,

"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

viagem pitoresca do brasil




escrito sob a luz de João Cabral de Melo Neto, Chico Science, Ferreira Gullar e Descartes Gadelha (pintor da obra exposta,"Estudo para 'Guerra diariamente'")


irmão, irmã,
eu entrego Severino
que veio da Serra
da, sua própria, Costela
roendo-a em versos
até o Capiberibe.

eu te entrego Severino,
brasil,
que caiu no mangue
e matou sua fome com
o caranguejo da sua
migração.

mas eu também levo
a criança que saltou
dentro da vida
para pular mais tarde
dentro da rede,
irmão das almas.

eu levo,
ah, isso eu levo,
o oráculo das ciganas:
levo o Aratu
mas também o Gabiru
levo um Vira-lata
primo raso do Urubu
levo um Chié
mas também um Carcará –
a sombra que te cobria,
Severino de Maria.

eu te levo pela mão,
ó, pátria amada,
e lavo as bordas do que digo
com parte da fome de lixo
dos cristos do Jangurussu.

eu te apresento,
Terra adorada,
entre outros mil
o João Batista do lixão
lavando as testas dos crentes
com a fumaça do Jordão.

eu te apresento,
lindo pendão da esperança,
Moisés indo ao Sinai
trazer um peixe do seu cume
para fritá-lo no chorume –
recebe o háfeto.

peço que conceda,
mãe gentil,
qualquer rosa que haja
ao corpo dessa menina:
talvez o seu perfume
esconda a cadaverina.

eu te trago pela mão,
idolatrada,
até o cego Caronte
que nos levará de canoa
pelas margens plácidas
do Anil-vinagre de gullar –
um rio que vai dar,
não pela geografia,
na Lagoa do Gengibre.

como sei que estás calçado,
impávido colosso,
não te prevenirei
dos bichos fiéis
que das crianças
vão comendo os pés.

o barqueiro pede pressa,
pois o tempo muda
e quando vierem as chuvas
os corpos daquelas casas
alimentarão o Anil,
engrossarão o vinagre
que ferve podre no rio.

brilhou no seu da pátria,
um riso limpo macho e branco,
nesse instante.
florão da américa,
penhor da igualdade,
berço esplêndido –
crime que não cometi.

dos filhos deste solo
és mãe ardil,
pátria amarga
e vil.


esse poema não seria possível sem a ajuda, não intencional, de José Carlos Emídio e Noëlie Merlet

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

avenida cabo branco

de quem viu mais que o mar no mar


não é preciso muito
para tocar com o dedo
essa matéria singela.

mas há que ter um choro
e deixar que os pássaros
voem naturalmente no peito
até perder-se a sua voz
na nossa.

é preciso descer à praia
e banhar os pés na areia,
lavar o rosto nesse vento,
que é o outro nome para
o cheiro das ondas que arrebentam
nos meus braços.

noite sobre os coqueiros,
mas que não seja espessa,
que não seja mais espessa
que a matéria do coração –
o coração de menino
forjado no suor
das ladeiras do Brasil.

da sorte de coisas simples,
há o amor que ser
sensível aos dedos
e pulsar quente
como um segundo núcleo da Terra.
há o amor que ser teu,
querida,
mas há também que mudar
os frutos de mãos
para que doce na voz
de quem faltou,
para que árvore
nos dedos de quem cantou.

não é preciso muito
para tocar com os olhos
essa matéria singela.

é por isso que guardo -
com o punho cerrado
e o peito aberto
às baleias,
às conchas,
aos peixes -
uma sorte de coisas simples
que nascerá já ontem
do ainda não
que hora estoura com as ondas
e um violoncelo
na avenida cabo branco.

um artigo francês

nada causa mais frustração ao poeta brasileiro que
"o mar", "o mar", "o mar", "o mar"...

"La mer" c'est trop meilleur

domingo, 28 de novembro de 2010

o verso

"[...] é o homem/ o pequeninho ser que treme,/ cai e levanta/ a fronte mais ferida/ e com o braço recém-arranhado/ empunha os relâmpagos"
(Pablo Neruda)


um dia,
no auge de toda poesia,
hei de atirar um verso,
não o sei ao certo,
contra o céu da boca –
ele trará os cheiros da terra
e um rastro verde de inverno.

nesse dia,
o verso sangrará outros –
estrelas incandescentes –
pelo buraco gravado no teto .

um dia,
com tudo o que queria,
hei de trançar esse verso,
o que não sei ao certo,
até fazê-lo em forca.

nesse dia,
ficarão as marcas na minha garganta
de todo o mel e a neblina
que dela fugiram em canto.

um dia,
no cume de toda agonia,
hei de jogar esse verso,
e o seguirei de perto,
do alto de uma torre.

nesse dia,
cantará o verso sobre o chão
até fazer-se poema no trigo
de todos os pães sobre as mesas.

um dia.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

esmo, léu

cabe a poesia antes que venha o fogo, os chutes, a água, o cuspe, as espingardas, o descaso e o ódio... cabia

a minha tigela
tem as cores do céu
e nuvens escassas
tintilando ligeiras.

tem o brilho do sol
mais que o das nuvens,
o cheiro do vento
mais que o da comida.

(mal) cabe a mim,
aos meus pequenos
e à poesia da súplica:
cabe a fome.

na minha tigela,
vê-se o fundo,
cabe o mundo
invertido.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

da luta não me retiro



uma homenagem do passado aos camaradas do ME combativo, mais uma vez vitorioso na UFC provando que sonhos não envelhecem

era uma massa de cores,
vermelhos, róseas, brancos.
promessas, verdades, cantos.

uma confusão de braços –
que deles nós temos dois
para tantos irmãos, tantos.

os abraços aqui, pois,
andando, amores serão,
e amores quando marcham

são sempre contravenção.
hoje à noite, noite-dia,
tomamos o chão da praça,

hasteamos poesia;
escrevemos as bandeiras,
eram todas rebeldia.

batuques, cheiros, cachaças.
verdes, lilases, laranjas
eram as cores da massa.


2008

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

ali

ontem, eu gostaria de dizer algo
algo pode ser uma vida pequeno
pequeno para caber milhas aqui –
aqui,

nesse lugar quente entre os versos
versos que fiz serem teus cabelos
cabelos que eu recito perfume aqui,
aqui...

aqui,
aqui, entre rios dourados, eu te amo
amo e não quero outra deslumbre tu vida,
vida a escalar-te com os dedos.

aqui...
em ti fica a invenção contada em poemas
poemas que cantarão ouro em você
eu que só me soube distante.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

XII [Jokerman]

"Pode-se dizer, portanto, que a religião desempenhou uma parte estratégica no empreendimento humano de construção do mundo [...] A religião supõe que a ordem humana é projetada na totalidade do ser. Ou por outra, a religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo"
(Peter Berger, O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião)


pus, um chapéu na cabeça
e uma cabeça na bandeja
bandeja de tantos banquetes.

pus uma vela sobre a mesa do jantar,
acesa com o fogo de não sei onde,
não sei quem.

não sei que cristo tinha cobras e leões entre os dedos
dos pés,
não sei que cobras e leões tinham dedos entre os pés
de cristo,
não sei que santo tinha flechas no peito,
não sei que flechas tinham o santo na ponta.

dizem,
houve um tempo em que os deuses
andavam pela terra
até que foram imolados
e assistiram aos dentes contra as vísceras.

não sei que deus tinha não sei quantas cabeças
e não sei quantos olhos para olhar não sei quantos homens
em não sei quantos lugares em sabe lá quanto tempo
temos.

dizem também
que depois de escovarem os dentes
os homens se comeram no jantar,
mas não havia mais pasta.
ficaram com os dentes sujos de sangue,
ficaram secos de tanta fome
dentes-sarjeta, boca-açougue
e o couro da barriga
abraçou as costelas.

e então,
sem saber porque tanta fome
tantas costelas
e quantas mulheres para cada uma;
sem saber porque tanta miséria,
juntaram a ossada dos deuses
e fizerem um grande fogo
enquanto pulavam sobre as chamas.
e eram as chamas dos altos-fornos,
eram as chamas das fábricas,
das caldeiras.

a nuvem negra
levou deus ao céu-cinza.

não sei quantas vezes não sei quantos homens mataram
não sei quantos deuses e fizeram não sei quantas perguntas
e buscaram não sei quantas respostas em sabe lá quanto tempo
temos.


(do livro "séculoXXIpoemas")

"Oh, Jokerman, you don't show any response!"

terça-feira, 2 de novembro de 2010

das pedras e do sonho


"pedras tantas do meu sonho,/ pedes tanto que meu sonho/ é sonhar levar-te, quando?"
(Jorge Luan, "lençol de pétalas")


pedras tantas do meu sonho
caminhos quantos e tortuosos
tantos
que as pedras cantando
saem da vida para o sonho.

sonho, oleira onírica,
academia em que só me vêm
punches, uppercuts, jabes...

pedes
que tenha calma,
ou coisa que o valha,
mas que sonho sonhado é esse
que se faz mais em parcimônia
que em noites e coices de insônia?

“dicotiledônea” seria uma rima,
não uma solução.

sonhar não é coisa que se faça
sonhando:
eu não tenho tempo para sonhar
que sonho.

prefiro ir aos saltos,
suando, rindo e cantando.

só assim
o sonho sai de Morfeu,
ou qualquer imagem breu,
e vai ter com os seus, os homens.

domingo, 31 de outubro de 2010

o triângulo



Seu mundo era triangular porque queria ver o mundo a partir do instrumento, mas tudo era tão circular... O sol, se teimava olhar, queimava os olhos e fugia circularmente; a lua, se inteira, tinha formas circulares; sabia pela boca do povo e da televisão que a terra era também uma bola pendurada por barbante.
Diabos! Por que tudo é redondo?
Queria descer a serra e mostrar ao Cariri quem era – aos seus, quem seria. Antes de partir, diziam a meias bocas, ou a bocas inteiras, que não girava bem da cabeça... Ora!, se tomava sua cachaça nos fins de semana, era problema seu; se queria sair daquela miséria de plantar para si e dar a parte do patrão, era problema seu; se queria tocar triângulo, era solução sua.
Mas a cachaça parecia ter comido parte do juízo desse homem, assim como o trabalho que escavou os rostos de seus pais, de seus tios e primos mais velhos. Pensavam pequeno, pequeno demais: o pensamento cabia numas poucas braças e sacos de tomate, cabia naquela serra que comeria seu corpo – qual carcará?
Contava vinte anos quando no primeiro pau-de-arara do dia com uma mochila preta nas costas, umas poucas roupas e um triângulo nas mãos. Veio o caminho tocando e imaginando as glórias futuras: na rádio para que seus pais escutassem. Viajaria pelo Brasil inteiro e, se cansasse, compraria o terreno do patrão e construiria uma casa com alpendre perto da velha arapiraca. Ele, tão sem juízo quanto todos os outros, queria cantar o galope à beira-mar com conhecimento de causa.
Quem é hoje esse homem que desceu a serra? Conta umas tantas secas e várias batidas no triângulo, conta uns tantos bonés de candidatos e umas 3 bolsas pretas rasgadas, conta dois triângulos e incontáveis “não”.
Ali está: no pé do palco em praça pública, acompanha o ritmo da banda que toca. Quem vê seus olhos implorando para subir? Quem escuta o batido do seu coração intimidar a zabumba, circular? Quem conta a alegria dos seus dedos, que conhecem a baqueta como a mãe o filho? Mas para ele é tudo alegria, alegria grande!, via-se como um grande músico ao lado dos que estavam no palco. Fechava os olhos e levantava o rosto desdenhando, com seu sorriso de vitória, a lua. Seus tênis furados são botas de couro; seu crucifixo de madeira, um presente do papa; sua camisa rasgada, um gibão de Expedito Seleiro. Aquele não é um show para centenas de pessoas, é o mundo que escuta o seu triângulo e seus gritos de alegria. São seus parentes em cima da lamparina.
Ali está: anda pelas ruas do Crato com a calça rasgada e a barriga vazia. Quem é esse homem, Deus? “Quem é aquele homem, mãe?” Poucos passos depois, “É um bêbado, menino, desarreda”. Buzinas. “Sai do meio, doido!” Anda correndo em direção à praça – onde os holofotes apagam o sol, as várias pessoas se reúnem e os microfones esperam. Larga tudo perto de um banco qualquer e puxa seu triângulo favorito.
No palco, toca e canta seus maiores sucessos; põe o braço por trás das costas e toca, levanta a cabeça suada e toca, fecha os olhos e toca – sorri como menino. E toca.
Sente a luz nos olhos diminuir, onde estão seus holofotes agora? Não escuta mais o barulho de gente, o ronco das motos seca a voz do triângulo. Uma mercearia fechada, um cachorro revirando o lixo, uma viatura que corre. Por que baixa o rosto, homem? Por que salga a praça com suor? Por que derruba com tanto descuido o triângulo? A solidão de um pé judiando o instrumento, o ruído mudo da boca contorcida, a mão já molhada de chuva nos olhos.
Junta tudo e caminha sob o céu circular.
Homem, para onde?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

İstanbul


se eu não gostasse tanto da escrita de Orhan Pamuk e, principalmente, se Mariana Guanabara não tivesse me presenteado com uma edição turca de "İstanbul", este poema não existiria

ao lado da moeda
5 kuruş
abaixo da noite

esse poema de mistério,
que fez do mistério sua
matéria.

o livro de pamuk
em turco, türk,
é todo feito dessa matéria.

não o mistério de quem não vê,
ou daquilo que se revela num susto:
é o mistério de quem olha,
de quem quer, mas não pode.

os “s” com cedilha me são estranhos,
também os “g” com circunflexos inversos;
mas nem tanto os “i” sem pingos,
pois é onde livro e eu, breu,
nos reconhecemos
e mostramos as cartas.

eu fico imaginando sentidos,
signo que não significa,
e bordo um livro em cima deste:
desenho İstanbul com as sombras desta.

huzun.
ruínas, melancólicas e turvas
ruínas de prédios e letras
turcas.

e tem varais, canais, jornais,
tem navios partidos pelo tempo
e uma tristeza nestas ruas
entre as linhas,
nas tortas vielas entre as frases –
vielas que, fatalmente,
encontrarão uma palavra com telhados,
ou o precipício do fim da página,
da vida fora de İstanbul.

minhas duas pernas são meus olhos.

os cachorros na rua, a neve,
a fumaça das barcaças
e os trilhos dos bondes;
mas também
duygusunu, otobüs, hipodrom
hatırlatalım, oldoğunu, karşılayamamaktı...
quantas coisas no mundo
e quantos mundos dentro
das línguas.

que importa perder-me entre
esses mercados e palavras?
essas aspas (e) travessas?
entre os sinais?
encontrar-se é luxo de quem
entende.

sobra essa tristeza da noite
sobre as gentes, Galata, os véus,
Atatürk
e o fantasma da união européia
vadeando seus euros pelos becos –
um cão uiva, cidade ruiva,
chovem letras sobre as pedras
e ambas carregam muitos anos.

eu te abraço, cidade velha,
eu te beijo, cidade nova,
como quem vê do Bósforo
uma mesquita atrás da fumaça
e os sentimentos pulando
de dentro das palavras.


as duas últimas fotos são, respectivamente, de autoria de Ozan Sagdic e de Ara Güler

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

pequena história das duas décadas - VI

ou Onde o poeta opera um milagre


O sertão é dentro da gente.
(João Guimarães Rosa)


na d-10 vermelha,
o buraco perto da caixa de marcha
deixava ver o caminho pedregoso,
ou o barro vermelho
que rodopiava atrás de nós.

o cheiro do gás me deixava enjoado,
como me deixavam as manhãs
de solavancos térreos e azulados.
do botijão, hoje sei,
veio o perfume que vez por outra
tenho impressão de sentir
escrevendo um poema,
ou cruzando a 13 de maio.

vezes,
vínhamos do sítio até Flamengo
para assistir à televisão
que ficava em praça pública –
lá na ponta, alta, grande
para o povo que se amontoava
em olhos, pipoqueiros, namorados, chapéus, políticos, cadeiras, cervejas, picolés e bocas,
principalmente bocas.

em várias casas,
os espelhos já estariam cobertos,
com toalhas ou lençóis, quando
as águas que caiam no sertão
escrevessem rios nas ladeiras
e poças nos terreiros –
quanta matéria para os porcos...

hoje,
fazem-me falta os atoleiros –
poema que estanca num verso.
fazem-me falta as meias retiradas,
as pernas da calça no joelho
e os homens lutando contra
a lama, a chuva, a sorte.

mas as águas também assombravam:
pediam silêncio nos telhados
para que ouvíssemos,
depois do clarão,
um tambor que enchia
todas as veredas.

a manhã sem nuvens era anunciada
pelo salto do tiziu,
um pássaro cujo canto não cabe
em si.
mas também pela festa
dos outros passarinhos -
sacudindo a água das penas -
e dos meninos, que depois da chuva
gorjeavam pelos riachos.

milagre maior
era o espinhaço alegre
do pão doce
comprado em Flamengo.


Villa-Lobos - Bachianas Brasileiras N°4, II movimento: Chorale (Canto do Sertão)

domingo, 10 de outubro de 2010

pirraça

meu poema
é demônio que anda cuspindo
em igrejas,
ou menino que anda quebrando
vidraças.

meu poema
é fogo
e anda incendiando carros.

meu poema anda em versos
para dizer que
a igreja, as vidraças e os carros
são teus.

acho até que o poema
anda imitando
o poeta.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

casamento castanho

você não saberá da
sorte de fotos, seios, olhares
você não saberá nem
“corte castanho”, “risos solares”

você não saberá me
dizer como a cor parou aqui
você não saberá se
ela veio dos céus, ou de ti...

pois só consigo contar
mostrando teu corpo cheio
dos versos em que te beijo
e você não saberá

terça-feira, 21 de setembro de 2010

riste

os muito alegres que perdoem
a minha tristeza.

estourando rojões
ou queimando a vida
dificilmente descerão do céu
dos risos.

poderão ver de todo
a tristeza da maré em São Luís,
a desolação da ponte em Fortaleza,
a miséria do metrô sobre Recife?

os alegres,
peço que nos perdoem,
que permitam sermos
tristes.

ristes
e rirás por muito tempo,
e penso que rindo tanto
talvez não consigas
ver os dentes da vida
te rindo as gengivas.

o perdão da minha tristeza,
pois só nela sou alegre.

ou farei da alegria
algo sensível como o pão,
sonoro como um beijo,
uma terra de leite e mel –
porque sempre soube ser triste
ao não ter na boca um adorno,
mas um sorriso vivo em riste.

domingo, 19 de setembro de 2010

impreciso

“A verdadeira singularidade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro.”

-Julio Cortázar, O jogo da amarelinha.




Eu preciso aprender certos segredos.
por mais longa que seja a descoberta,
vai deixar maior porção d’eu em mim.

o mistério de fazer o café
e saber a combinação dos goles
com a temperatura de cada verso.

os difíceis pagamentos bancários,
o receio do e-mail a ser escrito
e as mágicas a fazer com o salário.

sei da pobreza dos atos que digo.
é que sua riqueza é toda inversa,
os segredos não são novos planetas...

como pequenos milagres
que crescerão pelos dias
findando n’outro, maior:
isto de ser impreciso.
dentro de si, no escuro,
hastear cada mão n’Outra
como quem descobre o fogo,
ou o Outro.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

catarse

é quando uma faísca
cai no palheiro.

faísca na contramão,
conta à mão do fogo.
queima a folha
com lápis e tudo.

mas deixa o carvão,
deixa a cicatriz ardente,
corpo na mesa –
vão encontrar as marcas.

marcas a mesa com teu fogo,
ou a chama te marca
e .

catar-se,
recolher-se do incêndio
cuidadosamente,
mas tão feliz
em gênero, número e grau,
3°.

catarse.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

os 30 cearenses menos influentes (IV)

Babi Guedes

Sobre a noite baixa caem as horas em notas e vinho. Babi tocando violão.
Deu-nos o número do celular depois de tudo.
Deu-nos tudo depois de nada.
E deu de cair cantando nos poemas.

Barão

Um nobre sem servos, mas cervejas e cachaça. Também sanduíches. Uma vez, quisemos aquela cana de frutas vermelhas e Barão foi buscar no bar ao lado. Ao longo dos dias, Barão e sua camisa vermelha, pano passado, trazendo ligeiro a cerveja ligeira a mão ligeiro a cerveja ligeira a voz ligeira a cerveja, grade.
Sorrimos porque somos menores que o álcool, mas somos maiores – não que isso importe.

Zé Iran

Como cabem “tio” e “padrinho” no mesmo José? Na Igreja de Flamengo, me sagrei cristão sobre a benção dele e da madrinha. A minha fé se foi e nunca pedi perdão a ele por isso.
Quando ainda morava na Barra, um sítio, comprou uma moto. Como não sabia andar, dependia de quem pudesse levá-lo.
Sobre as mulheres da sua vida, palavras quase em cantiga de roda hão de rodar na boca dos meninos:
A primeira, nó nas tripas;
A segunda, traição;
A terceira, um aneurisma;
Na quarta, virou “irmão”.

Francisco

O Beco da Poeira sairia dali, o Beco da Poeira iria para a Avenida Imperador, onde não há mercado bom para plantas medicinais e fumo e rapé e pimenta e etc.
O Francisco moreno e de olhos puxados quase escondidos sob o boné.
“Quando eu sair daqui e me aposentar, vou morar numa casinha que tenho lá em cima da serra, lá no Quixeré, em Lagoinha”. E me falou isso do nada, mas como quem puxa algo de dentro do peito. Era daquela família de frases que não dizemos aos filhos, aos pais, ou à mulher porque são palavras que explodiram anos-luzes atrás e só sabem brilhar dia a dia nos olhos, que lacrimejam.
Longe do Box, longe do Beco, longe da sombra, Francisco agora vende nas ruas do Centro.


Jazinete


A minha madrinha tinha mania de limpeza. Em sua casa, só se entrava pela porta de trás e sem os calçados. O resultado era que o cimento brilhava, espelho perfeito. Espanava os caibros e as ripas, espanava as linhas.
A casa ficava num lugar alto e sujo pelos ventos, e minha madrinha ia varrendo o terreiro, o alpendre, a sala e os quartos enquanto a comida estava no fogo – mais valia varrer o vento.
Dizem que um dia retirou cada telha da casa e lavou, mas não sei se foi antes ou depois de lavar o gato e pendurá-lo no varal.
Minha madrinha – que pouco poderia me dar além do carinho e dos doces – um dia retirou da parede da sua casa um quadro que eu sempre quis, estava dando-a a mim; mas não antes de limpá-lo, claro.

Dona Eunice*

Dona Eunice jogou pedras quando o rapa veio tomar os produtos que vendia, “o cacete comeu”. Cada pedra tinha o peso dos 40 anos de comércio ambulante, cada pedra era cada uma das calçadas em que vendeu, mas cada pedra saiu pela culatra e parou o coração. Três dias na UTI. E Dona Eunice vendia tão pouco...
Dona Eunice, que eu não conheci, traz numa bolsa um certificado: foi a primeira cliente da ROMCY e ganhou um conjunto de taças. Dona Eunice – para além do rapa e dos perigos da rua – traz consigo o momento em que foi importante.
Carrega contigo também estas linhas, Dona Eunice.


* Créditos para o sociólogo e amigo Joannes Paulus, que salvou os depoimentos de Dona Eunice na sua monografia, um estudo sobre os impactos causados pela construção do METROFOR no comércio ambulante do centro de Fortaleza.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

os 30 cearenses menos influentes (III)

Malá

Vó: magra, velha e forte, mas mania de doença. Bife, arroz, farofa... Doce de leite. O pé de laranja é limão. “Cajueiro, cajueiro, m’arresponda por favor...” Muito preocupada com o neto: único do único filho.
Redemoinho: Ave Maria Ave Maria Ave Maria; Trovão: Ave Maria Ave Maria Ave Maria; Enchente em Palmares: Ave Maria Ave Maria Ave Maria. Ama tanto o neto que ele não sabe retribuir, e voa longe: Ave, Maria, Ave.

Sobral

De esquina era o bar, e um público fiel batia ponto e cerveja e tira-gosto (pequeno fogão dentro). Política. Moreno, barba, barriga. Eu ia comprar refrigerantes.
Aumentaram o aluguel, Sobral saiu – mas ficou.

Aurenir

Negra, já velhinha e, talvez por isso, bem viva. Corria pelo colégio e pela densidade da quentura iguatuense. Sempre fala comigo quando volto. Tímida para grandes coisas: festas, madrinha da turma...
Quantos copos de café na cozinha do colégio.

Jessé

Primeira aula: discutimos sobre Cuba e a revista Veja. As outras aulas: piada, riso. Cabelo e barbas pintadas. Nariz de tucano. Negro. O nome do fusca vermelho é “Chapolin”.
Cerveja, conversa, noites. Com Fábio e Wendel, terminamos no show do Bartô Galeno: R$ 2,00, fim de festa.
E quando eu terminar, estarás recomeçando: o som das tuas piadas continuando.
Essa é a geografia pouca da vida – falta a tua, tanta.


Tio Chico


Tio Chico não era meu tio, era meu avô. Surpresa: outro pai do pai. “Massa bruta”, me chama e aperta forte a mão da mesma massa sua, bruta.
Cresceu no mato, na roça: vários filhos.
Isabel, mulher primeira, morreu e um dia o filho pequeno brincando debaixo dos pés de um burro... Melhor dar o menino que vê-lo morto.
Íamos para Iguatu em seu aniversário, casa simples, todos os tios. Aniversário é baião, cuscuz, carne cozida, cachaça (não eu, ainda) e fotos; humildes, barriga cheia.
Massa bruta, mas fina.

Wilson

Meio rabugento e perto do escritório. Falador, dizem. Cajuína com bolo perto do prédio do padre.
Não coloque o carro aí, não, que fica tampando a vista do bar.
O bar olha para fora e suspira ausência. Wilson inclina a cadeira na parede.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

os 30 cearenses menos influentes (II)

sugestão: antes de ler, ver as duas postagens anteriores

Branco

Comprou uma moto porque sempre quis uma. Coriti-Flamengo-Catarina, moto. Placa de lugar distante quebrada na metade. Para onde vai agora, vai de moto, e cuida tanto dela, filha vermelha mais velha...
Homem que viveu para frente: virou menino com as rodas.

Gardel

“Amaldiçoado”, “Inseto”, “Besta fera”- palavrões que aprendi nas capoeiras enquanto procurávamos ovelhas. Fazer barragens, pescar com arame de cerca e feijão cozido, matar lagartixas com baladeiras (dá azar), construir balsas com bananeiras, atravessar o açude nadando, laçar ovelhas...
Filho de Mário. Hoje: “Marão, eu vou comprar uma moto e vou mandar fazer um caixãozinho de madeira para levar você na garupa”.
“Inseto” feliz.

Djalma

Tio. Chapéu, fumo, voz grossa, sanfona, cachaça, olho fechado – “puxei” os dois últimos. Trabalha muito, bebe quanto, roça tanta, cachaça e canta alceu. "tu vens, tu vens" e é de quem eu me orgulho sinceramente.
Celular e tira-gosto.

Dezinha

Vai pela rua xingado Deus e o mundo – injustos e cegos, balança torta. Gritam os meninos gritam do alto de sua infância: piiii! Xingando pela rua, piiii!
É porque o filho dela morreu atropelado, disseram.
O motor do carro é menor que o coração, todavia o desespero... Pulando do peito em gritos.
Foi preciso enlouquecer para não ficar louca.
Piiii!


Seo Ozias

Merendar, comprar caldo de cana e pastel naquela rua perto da Igreja. Pelo caminho, chapéus nas paredes das lojas, lamparinas penduradas, espoletas para pistolas de menino, currulepes, isqueiros, fumo. O pau-de-arara parava ali perto.
Merendar, comprar caldo de cana e pastel: Oziasotaque. Anos mais tarde (hoje) viriam o bigode, as coxinhas e as porções com pequenos pastéis.
Moto velha, parece que os óculos são o pára-choque.
Noite, fome: SebOzias. Puro amor.

Zé Santana

Magro, chapéu, matuto, amundiçado. Conversador: conversa com gente é pergunta(r). Conversa com a fome é comer, comer, comer: cabra esgalamido. Meia banda de um queijo com uma lata de doce de goiaba, só pode passar mal.
Passa é bem, Zé. É bem.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

os 30 cearenses menos influentes (I)

antes de ler, ver a postagem "a lista - uma introdução"


Mário Rosa

Filho de Seo Manel. Barba meio preta, meio ruiva (hoje, fios de prata).
Senta na calçada, cruza as pernas (há uma bota em cada pé) e fica como estátua de barro vermelho fumando o cigarro que apertou. Prometi um litro de whisky, vez.
Na final da copa da França, rasgou um pedaço da camisa a cada gol sofrido pelo Brasil. Pediu que a esposa costurasse quando chegou em casa.
Ri sinceramente o peito com os botões abertos: coração.

Seo Expedito

O outro lado da Cazuzinha Marques. Na esquina, mercearia. O seo Expedito de olhos azuis, branco, óculos, shorts, vendendo pão na minha infância. Bombons também e outras miudezas em grandeza. Hoje, pouca gente na mercearia, pouca coisa nas prateleiras. Seo Expedito continua na calçada, quase cego, olhando a rua... E é a rua mais bela dos anos passados.
Com essa imagem nos olhos, talvez até seja melhor ficar cego.

Geralda Badu

É urgente ir para a rezadeira, que isto é espinhela caída. Calçada alta na beira do asfalto – umas das duas únicas ruas que o tinha. Eu, pequeno: minha avó me levava. Geralda, senhora de vestido e sangue índio nos olhos puxados. Eu sentado na cadeira de balanço: balança um ramo que pegou no quintal. Reza baixo – só os carros indo e vindo. Seus olhos lacrimejam.
Viu como o mal olhado era grande? Ela até chorou.

Seo Silva

Calça frouxa. Caindo. Pele morena. Andando nas ruas ao lado da Rodoviária de Acopiara. Quase não consigo entender o que diz, mas arriscamos algumas palavras. Vê-se as costelas.
“Peru!” Seo Silva, xingando, arremessa pedras nos meninos, que correm mais que ele.

Seo Jesus

Chapéu, camisa de botões, chinelo, bigode. Vendia bombons, “chilitos”, chocolates e chicletes dentro da escola.
Operava milagres invisíveis, mas cotidianos: moedas em doces.
Está sentado à direita do carrinho, está?, de onde há de falar e vender aos meninos e aos homens.

Katchup

Criminoso, meliante, elemento, vagabundo, ladrão da região centro-sul, homicida.
Beira do Jaguaribe (Iguatu), disparos. Pela vida. Usado o molho para temperar os jornais, jogaram o saquinho no lixo.

a lista - uma introdução

Quantas coisas se aprende nessa vida. Dentre as tantas (?) que aprendi, as que desaprendi foram as mais importantes – Manoel de Barros estava certíssimo. Tristeza maior é não dar-se em todas as horas do dia para, num “esforço” de borboleta voando, desaprender.
Desaprender admite tantas formas... Mas duas em especial. Numa delas, crescemos porque aprendemos ao avesso – tocamos aquele núcleo poético das coisas e das gentes –, é o inverso; noutra, desaprender equivale a alienar-se, afastar-se da realidade tomando o que se diz como real nas suas últimas conseqüências – aqui, “desaprender” é renunciar à consciência crítica. Consiste tarefa dos que se põem ao lado da humanidade (ou da parte humana dela) desaprender na primeira concepção para falsear a segunda. Não se trata de um hino ao realismo, naturalismo, realismo socialista, ou qualquer outra forma estética, ou de literatura engajada; mas também não se trata de, no maior devaneio formalista e parnasiano, isolar a literatura da vida real dos homens e quedar falando de vasos chineses, ou gregos – ourives imbecil.
Em última instância, trata-se de subverter as estruturas para, de dentro delas mesmas, florescer algo novo, humano – aquela flor que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, apesar de feia. Aqui, nessas linhas bestas, se trata justamente do ódio, não daquele ódio que mata homens, prepara arapucas e se perde nos seus próprios termos... É o ódio naquele sentido de subverter para (re)inventar, é tornar em matéria de poesia para, oxalá, mudar a matéria. E foi Carlos que disse: “Ao menino de 1918 chamavam anarquista./ Porém meu ódio é o melhor de mim./ Com ele me salvo/ e dou a poucos uma esperança mínima”. Não é por acaso que em “A flor e a náusea”, o poema de Drummond em questão, depois do ódio vem a flor no verso seguinte: “Uma flor nasceu na rua!”. Existe um ódio que traz dentro de si a flor.
Sem mais delongas, descobri que existe uma lista (perderam tempo, e folhas, com isso) dos 30 cearenses mais influentes em 2010. A revista “Fale”, publicação cearense, completa 10 anos de “publicação ininterrupta” em setembro e, comemorando, elaborou a tal lista onde figuram personalidades como Tasso Jereissati, Adísia Sá, Airton José Vidal Queiroz, Ciro Gomes, etc. Do link acima: “Mesmo assim, creia leitor, nossa lista não é sobre a influência do poder mas sobre o poder da influência”. Marx e Engels, que costumavam usar esses jogos de palavras (“A crítica das armas” e “As armas da crítica”; em Hegel, do “céu” à terra, no materialismo histórico, da terra ao “céu”, etc), tremem nos túmulos diante dessa versão piorada do artifício lingüístico e dialético. Carece tremer, não.
Se a lista é sobre “o poder da influência”, o que caracteriza e determina a influência? Olhando a lista, escolhidos os cearenses pelo voto popular, fica fácil descobrir: ser um “arauto do capital”¹, um “honorável bandido”², ou um Benedetto Croce ³ cearense.
Eu fiquei me perguntando se foram, realmente, esses homens e mulheres os mais “influentes”. Eles representam os cearenses? E as duas perguntas mais poderosas já inventadas pelos anjos tortos: influentes por que e para quem?
Acontece que o inverso das coisas tem o poder de iluminá-las, o que equivale a questioná-las. Eis-me aqui questionando essa lista e bordando a minha. Voltei-me para o passado e percebi que ele ecoava, tambor batendo. Nas vielas, salas, vazantes, capoeiras, mercados, rodoviárias, colégios, praças e campos de lírios (“Os lírios não nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra”) eu encontrei 30 cearenses. Não sei se são mais influentes que aqueles, não sei se ganhariam mais que dez votos, mas sei que teriam o meu. Bordo a lista em poesia, mas não dou um nome à forma, deixo para os leitores, mais capazes que eu. Assim, ao olhar para o passado também falo “Sobre essas coisas sem jeito que trago em meu peito e que eu acho tão bom”. A lista seguirá nas próximas postagens com o nome "Os 30 cearenses menos influentes".
Oxalá, um dia, esses homens e mulheres sejam reconhecidos como o retrato do povo cearense e ganhem o que não foi seu até hoje: o Ceará nos seus campos, serras, praias e poesia. Oxalá.


¹ A expressão é do filósofo marxista húngaro István Mészarós (1930-). Refere-se àqueles que, nas suas atividades, reproduzem ou contribuem na/para a reprodução do “sistema sociometabólico do capital”
² A expressão é de Karl Marx (1818-1883), mas foi utilizada recentemente pelo jornalista Palmério Dória num ótimo livro sobre José Sarney e a sua família (o livro se chama “Honoráveis Bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney”).
³ Benedetto Croce (1866-1952) foi um pensador e político italiano. Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo e político marxista italiano, dedicou parte dos seus Cadernos do Cárcere à análise e desconstrução do pensamento do autor. Gramsci o classificou como um “intelectual tradicional”, aquele que está ligado organicamente aos interesses das classes tradicionais. No que nos interessa nesse paralelo, basta dizer que jornalistas, homens ou mulheres, cumprem bem essa função.


"Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

“Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir"

- “Nosso Tempo”, Carlos Drummond de Andrade.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

outro bordado

coube bordar
no avesso do conto de reis
não o silêncio dos,
mas o canto de
réus.

pontos verdes flanando
seu caminho de folhas
pelo tecido fácil
do dia.

saber que o bordado muda
por ver que a costura fala.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

kriska

“branca, branca, branca, eu dizia, bela, bela, bela”

branca, mas
uma aquarela no peito:
basta abrires a boca
para as cores florescerem
como em festa delicada.

era noite,
eu pus tua mão na minha
e disse: vem.
vieste, e
teus cabelos, teus lábios, teus seios.

a noite ficou lá fora,
a manhã era uma promessa distante.
juntos, esquecemos o tempo,
mas não por completo:
uma gota no vidro, chuva.

fui descobrindo teu corpo aos poucos
e os segredos doces que são teus,
sinais.
eu não entendia se tocava a ti,
ou se beijava o corpo de uma nuvem
que se movia entre meus dedos; mas

ali sabia, não era mais só.
fechei os olhos, que já não eram meus,
e foi como abrir a vida
para que entrasses,
nuvem ou mulher.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

síndrome trotskista (piada na 3ª internacional)



não é vontade de ter um cavanhaque,
nem de matar os rebeldes de kronstadt,
ou mostrar a barbárie do stalinismo;
mas um receio bobo sobre o alpinismo.

uma homenagem torta a Leon Trotsky

quarta-feira, 14 de julho de 2010

são as bordas

da felicidade, latifúndio,
a parte que me cabe
são as bordas,
são as bordas,
são as...

a terra que queria ver dividida
é a conta menor que tirei em vida;
mas é vazante rica para meu peito
e sobre ela, teimoso, planto morada.

a carne pouca na terra ancha
espera,
esperancha.

deste latifúndio,
a parte que me coube foi a fé,
foi a
fé,
foi a

fé...


livremente inspirado em João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 12 de julho de 2010

conto de reis



Francisco,
suaste teu conto de réis
durante séculos e já não podes
crer nisso,
nesse conto de reis.

se tu Quebrasses
o teto do mundo,
se fizesses o céu em pedaços,
caberia alguma estrela para ti,
Francisco.

já imaginou, homem?
uma estrela inteira para ti!
ganharias uma das três Marias –
ela, tua esposa filha e mãe.

e os cometas,
que estrago fariam nas praças
e nos pátios das fábricas!
quantas torres (outras) derrubariam,
quanto trabalho para teus meninos,
Francisco!

essa terra, Francisco,
essa terra que é da tua cor:
laça a pá com os dedos
e lança o marrom!
Reconstrói o céu, homem!

e espera,
espera que os frutos cairão
num tempo de delicadeza,
Francisco:
cada tarefa da terra e do céu
plantada –
tanta Cana, Jerimum, Tomate, Feijão...

mas
isso tudo
se não creres nesse
conto de reis,
Francisco.


foto de Sebastião Salgado

terça-feira, 6 de julho de 2010

sábado, 3 de julho de 2010

um Ruído

porque meu corpo
quer devorar teu corpo
em silêncio.
porque minha boca
que mastigar tua alma
em silêncio.
porque minha imaginação
veio tragando tua miragem
e encantando-a em versos
de fortaleza até cá
em silêncio.
porque não te amo,
mas te amo
desde que “amor” seja dito
nas bordas de sussurros:
em silêncio,
quase.

2007ou8?/2010

sexta-feira, 2 de julho de 2010

desmatéria

para o Yan

o ponto fundamental
é não confundir
completamente
matéria de poesia com
poesia da matéria –
sim, o é.

qual a matéria,
pergunto,
de uma caixa de fósforos,
uma mesa de bar,
um violão,
um malandro a cantar?

qual a matéria,
pergunto,
do Sérgio Alves marcando
no castelão entupido,
da cachaça na mão,
da alegria por ter ido?

a única matéria que me interessa
é a porção de desmatéria
que subverte a matéria primeira
para florescer algo novo,
poesia.

terça-feira, 29 de junho de 2010

sinto

tem coisas miúdas,
mas tão lindas
que me arrancam lágrimas.

tem coisas minhas
e tão minhas
que ainda sinto,
mesmo se as perdi.

tem coisas do mundo
e tão finas
que se vejo ao longe
creio que não vi.

tem coisas sentidas,
pressentidas,
que missão como um poema:
se não as faço,
se não as sinto,
sei que viver é pouco
e vivendo,
minto.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

terça-feira, 22 de junho de 2010

domingo, 20 de junho de 2010

o assalto (quedar morto)

quando me abordou, eu estava calmo,
mas ao notar que ele me acertou o ombro...
“imbecil, não vê que faltou um palmo?!”

quinta-feira, 17 de junho de 2010

fratura

fica a cicatriz dos meus gestos
no canto esquerdo do teu olho
direito, que é para descer
uma lágrima esquerda,
se descer.

ficam
as sombras dos meus não-gestos.
e não habitam qualquer canto
senão este em que desafio
o teu silêncio de palavras
pesando para baixo.

numa terra sem luzes,
capturo vaga-lumes nas vielas.
enquanto dormes,
silenciosamente
ilumino o corpo
procurando as marcas
deixadas.

caio numa escura, dona,
e está tudo calçada.
puxo de lápis e conhaque –
“eu não devia te dizer” –
e passo, com os dedos,
a examinar meu próprio corpo,
à cada centímetro um verso.
essa cartografia.

isso posto:
osso exposto.


depois, uma (quase) introdução

domingo, 13 de junho de 2010

um trato

Façamos um trato, Amor,
assim,
informalmente.

Não exigirei muito de você,
serei humilde
como a torneira que pinga a vida
toda a vida.

Não usarei fogos de artifício
para dizer teu nome
vizinho ao nome da amada,
basta saber que caminhas cá,
no peito dela.

Não gritarei aos jornais -
deixa que estejas sereno,
em cada página,
como um velhinho simpático
que ri da fuzilaria.

Façamos um trato, amigo:
não levantarei teu humano nome em vão,
e permitirás que vão-se os anos.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

maio

maio caindo dentro de junho
feito água que cai no copo e
derrama um dia.

o que sobra de maio
não é o dia, todavia:
é esse nome sem nome
transbordando.

o corpo absorve,
e maio corre em cor
quebrando vasos e cantando
dentro de mim –
onde termina e onde começo?

sábado, 29 de maio de 2010

cinzento

Não sei se me amas,
mas ouço daqui as batidas
chamando-me, chamas
que se apagarão?

Não medi o espaço de um ano,
não medi toda a distância,
e não sei o que será,
se é que será;
mas quem ama não precisa disso
para saber que ama.

E quando um dia a chama
cansar de chamar,
restarão as cinzas
num outro mundo, cinza.

2007

um comentário em 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

o curso




bateu o cigarro no cinzeiro.“vamos ao método. primeiro, folhas e papel. terá de haver também algum cimento preparado com suor ou sangue”. deu uma tragada tão profunda que a fumaça pareceu tossi-lo. “em lima, tentaram usar sangue de morcegos. infrutífero, métodos medrosos: deve ser o nosso. dos escravos não, barão. agora... isso, anote. deve chamar um contrabaixista, um violoncelista e um bandoneonista, donde se vê que o espaço deve ser considerável. também trazê-las logo depois de verem os corpos das suas crianças. sim. isso mesmo, casa isolada, ou isolar o som”. o senhor já sexagenário bateu a xícara no pires – décadas mais tarde alguns dirão que foi medo, outros, parkinson. um jovem brincava com a costeleta, outro anotava vigorosamente até os silêncios: folhas e folhas em branco.
“de preferência meninas: uma branca, no máximo. pois bem... é preciso um grande birô... as paredes? como são detalhistas! o segredo é não serem todas brancas. azulejos são terminantemente proibidos. aliás! são permitidos, anote essa variação: deixa-se uma parede com azulejos brancos e quebram-se dois ou três tijolos na parede oposta, que deve dar para o sol. dessa forma, dois, ou três, fachos de luz entrarão tortamente e incidirão no branco, assim o quarto ficará mais escuro... claro, nada como um oposto para confirmar o outro. pois bem... seria bom que pusessem alguns cavalos no cômodo acima, de sorte que, quando correrem, cairá uma poeira fina que atravessará os fachos produzindo um efeito desolador...” o dono do bar explicava para dois clientes barulhentos que o espaço havia sido reservado pelo barão e o senador – os três jovens estudantes e o padeiro eram dispensáveis da justificativa. “tinto, por gentileza”. fez-se silêncio até a chegada.
“pois bem, jovens, que mais querem saber? tudo? como ‘tudo’?! eu já lhes dei todos os ingredientes, que mais querem? não acham que vocês podem se virar muito bem juntos...? é fato... com o cimento vocês erguerão a casa, donde se percebe que é trabalho para anos e anos de hemorragia; e também de corrida ao redor da praça do imperador – aconselho o uso de garrafas de vidro, que devem ser balançadas constantemente, no primeiro caso, toalhas, no segundo”. o padeiro calculava o custo das garrafas em croissants, o jovem médico achava que ninguém perceberia (nem ele) se roubasse o sangue dos pacientes, o advogado... o advogado calculava os anos de encarceramento e as melhores formas de esconder as evidências. “bom, senhores, é tudo. o papel deve ser amarelo e a caneta, preta – isto é crucial! espero que nos encontremos em breve e que dessa vez vocês me vejam... sim, me provocam, mas são tão míopes que fazem do umbigo um muro... se não conseguirem assim, só resta a amora sobre o caixão, ou o clichê da dúzia de flores vermelhas, mas já nem importará tanto, não é?” riu enquanto apanhava a bengala e o chapéu. “no mais, vocês sabem que chegará um tempo em que não vai ser tão fácil... ou será... será, mas o gosto também será outro. e minhas roupas também”. exatos três segundos de silêncio, como foi previsto, e voilà: “importar-se-ão menos que hoje... os senhores vão me desculpar, mas é chegada minha hora”, tomou o resto do vinho, “há muitos campos de batalha para visitar, muitas amantes sobre parapeitos, mares salgados, navios negreiros, bondes perdidos, goteiras, passarinhos, capoeiras, inconfidências, construções, verde... finda aqui nosso curso, gentlemen”.
na calçada, acendeu mais um cigarro e pensou que aquela roupa o incomodava. viu os bondes lotados... brancas pretas amarelas... para que, no fim das contas? viu o escarro infinito das chaminés e as caras enlameadas dos negrinhos. pôs a mão na cintura: chapéu francês observa vitrine. riu um riso que caiu no canto da boca e saiu voando pelas ruas que levam ao porto.
“o pior é que eles precisam de receitas até para isso...” enfiou o cigarro em uma maçã e a enroscou num poste, assim a calçada ficava mais bem iluminada, julgou. miseráveis.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

receita




desculpando-se,
amassar o coração de três girassóis
e lançar girando o amarelo.
emboscar sete borboletas
e capturá-las com “bom dias”.
plantar abelhas em kiwis
e aguardar o espirro do mel –
ver-se-á que nem é tão difícil.

misturar todos os ingredientes
ouvindo frevo
e espremer os sentimentos
mais doces e raros.

arremessar nos escapamentos dos carros
e nos óculos da burguesia nacional,
fugir tocando rabeca
e tropeçar gargalhando num mundo mais
humano.

terça-feira, 11 de maio de 2010

violoncelos carambolas



Para Heitor, mestre, e também para Eudenia, irmã.

no início era quase o som,
e era, assim, quase estar vivo –
não sendo, pois, sentimento.

o ruído viu-se bom
quando veio a percussão
num suspiro tão do tempo.

e foi-se fazendo tanto,
de si muito para lá,
de lá em ré para o dó,

que a vida se fez em canto:
a terra, em flor, violinos,
se o sol em raios violas.


Choros Nº10 - Villa-Lobos

domingo, 9 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - IV

a primeira vez para ela
foi em um celular,
a luz do aparelho era azul,
mas daquele dia em diante
era o verde.
cairá o quarto na lembrança, o chão: eu.

e foi no chão de um quarto
a segunda que escrevi,
era um lápis no borrão.
eu lembro, catavento.
cama, cama-vento: ela.

hoje correm as páginas e entrelinhas
e sabem o mundo
em qualquer palmo de terra
onde haja vida –
independente dela, de mim,
e, principalmente,
de nós dois.

vou
carregando a minha aldeia
cantando em carrocerias
andando em ruas antigas.

tudo isso para descobrir
rindo
que caminho e caminhei sempre sobre seus olhos,
Terra tão verde.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - III



depois de fulana
vieram outras, outras tão lindas.
tão lindas que me queimam o peito,
golpe do passado,
falta ar.

desfaleço no quarto,
e é um grande cômodo francês
ou o miserável de raskólnikov,
e caio ao chão
beijado pelo coice da vida.
alguém corra para olhar seu pulso!

afogando-me menos em sangue
que nas lembranças delas,
eu fico largado num canto
usando a cadeira como apoio
em busca do sopro perdido.

tinha cabelos cacheados,
lindos loiros cacheados
como raios de sol comprimidos.
leu meus primeiros poemas
que escrevi com essa intenção,
mas nunca soube,
eu nunca contei,
que eram todos para ela –
não deixe de dizer isso.
e peça desculpas, peça,
pela conversa que ousei,
mas nunca tivemos.
ficou melhor assim.

era o começo da vida em outra cidade
e vieram outras, outras tão belas
que meu peito borbulha em festa –
aniversário ou velório.

mas houve, principalmente,
as que não soube,
as que não lembro,
as que não souberam.
nunca me dei bem com as palavras –
e essa é uma daquelas boas ironias.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

pequena história das duas décadas- II

o primeiro foi maquiavel.
também li algo de rousseau, voltaire,
mas enganei poucos com nietzsche.
eu me queria o príncipe,
ou um revolucionário francês.

comecei a ler menos por vontade
que por gostar de fulana –
se quem ela amava lia,
eu também deveria.

mas eu gostava, josé,
eu gostava.
a única pedra em meu sapato
era a ausência,
o chão logo depois do salto,
arco tocando cordas de vento.

e pensar que ela vivia comigo...
pensar que ela me explicava coisas
que nem sequer sabia sentir.

a pedra, no sapato, jogou-se
do pé para o caminho
e saiu pulando pelo calçamento.
os versos ricochetearam nas paredes
e no sino da igreja.
um deles me perfurou o peito.

durante dois segundos fiquei em silêncio
me esvaindo em sentimentos
e visões de antes.
as nuvens passavam rápidas
e tudo ficava distante,
lento e distante.
era a morte?

foi quando.
entraram no peito duas folhas de uma árvore,
dois olhares de uma mulher,
e duas gotas do suor de um roceiro.
dentro, se fez o cimento
e cavou-se o alicerce
onde vou levantando a mim
com os tijolos que consigo queimar
no meio-dia do sol.

foi assim que a poesia entrou nele uma segunda vez,
e é por isso que sua rubrica tem dois pontos –
é o que conta o mito.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - I

onde se dizem algumas verdades sobre a vida e ainda algumas trivialidades bestas sobre o poeta e a natureza da poesia, e aí eu duvido muito que alguém se interesse

o escritório tinha paredes cascarentas
e cortei-me várias vezes.
sobre o bureau, papéis, pedras, canetas,
meus braços lendo o livro.

então um livro poderia ser assim,
não falar de répteis, tabuadas?
que é isso que se faz com as palavras?
a última de uma linha
a linha de uma última
se fecham em som, em voz
e surpresa.

vou-me imitando isso
e a professora diz um nome:
“poesia”.
poesia, poesia...
vou repetindo até chegar em casa,
passando por terrenos baldios
e a rua onde seria o cabeleireiro.
poesia, poesia...
baldeiam terrenos com cabelos verdes
por entre o barro vermelho das doze horas
e as casas, casas ainda não feitas,
que escalariam cada palmo do ar
quando eu já me fosse menos novo.
poesia? poesia?

as belas meninas da escola
sabiam o que era “poesia, poesia...”,
mas não era a mesma coisa
para mim e para elas.
semiótica (só em dois mil e oito):
riso é pena ou “gostar”?
eu não amava, eu “gostava”
de fulana, sicrana...

menos cedo,
eu saberia a matéria cheirosa
de que é feito o amor –
fogo de beber com as mãos.
meu coração é meus rins
e o peito, menino, sorri.
passo exalando amor pelas mercearias,
fino vapor verde.

domingo, 2 de maio de 2010

o aniversário

Eu,
o tempo curvou-me a coluna,
o tempo fez-me curvo,
curva sinuosa,
perigosa?

Eu,
o tempo fez-me "Eu",
o tempo fez-me tal sou;
E se "Eu", e se Sou,
não devo nada ao nada.

A vida fez-me Ser,
"Ser" maiúsculo,
"Ser" verbo,
Ser humano.

2006

segunda-feira, 26 de abril de 2010

anedota libertária

intelectual,
passou a vida toda vida tentando
definir "liberdade".
livros, música, drogas, surf
cabelos brancos.

um dia desistiu.
levantou-se do banco
e flanou sob os ipês.
deu o sinal
e foi contando postes
até chegar em casa.

quando se soube derrotado,
felicidade cantando,
foi que definira
a liberdade.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

madrugada

V

que posso eu contra o mundo,
se só possuo palavras e dois olhos?
que posso eu contra o mundo,
se só me possuem palavras e passos?

vou chutando latas
e chuto meu olhar com elas,
mas a cabeça cá fica.
e chutando latas
também chuto os ponteiros -
ou são eles que me chutam
viela a dentro, vida afora.

folhas, anonimamente...

que posso eu contra o mundo?
dizer, posso dizer.

e dizendo pelas ruas,
ver que de tantas palavras,
ver que de tanta verdade,
a madrugada cai em si:
parafuso na madeira.

vindo,
esse tempo de palavras abertas
como o colo sombreado das árvores.

a madrugada fica como um quadro
que só ando
quando acho
que o eu em mim
não é.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

sexta corda




"falo da vida do povo: nada de velho, ou de novo"

nosso velho violão preto
na praça da gentilândia:
notas de vinho, canções embreagados
nós embreagadas elas.

somos quatro marginais
sentados em chão e banco verde
tomando um garrafão violado
aos gritos
somos quatro marginais.

sobra noite
e o palmo que resta
é sombra,
árvores. sóis são faróis,
faróis são gente

mente quem diz que o dia
só é dia de manhã,
há muitos sóis-gente
caminhando de vermelho e linho e grisalho,
e diapasão, e voz, e cigarro e
babi guedes.

nosso velho violão, bicentenário
quase,
sem a sexta corda,
mas pra que corda
se há babi?

o que falta, a medida que sobra,
é respeito a essa gente-babi
caminhando genial pelas ruas.

sobra poeira nos olhos.

"alegria do povo é sambar e sonhar"

Caiu a folha

quarta-feira, 14 de abril de 2010

sob a tarde cinza

o que há de nobre em mim
é essa loucura de borboletas
arfando em revoada verde
dos casulos sóbrios.

terça-feira, 13 de abril de 2010

quarta-feira, 31 de março de 2010

satanás

velho branco viajando de longe,
mascate mouro de barba arruivada,
olhos puxados, lábios grossos,
bate na porta de casa,
sorri honestamente um copo d'água.
Cheira à canela.

segunda-feira, 29 de março de 2010

um mito




II

Eu tenho uma alegria
e ela pode muito bem caber
nesse alpendre improvisado
nessa cadeira de ferro
nesse copo de cerveja.

E é sempre bom lembrar
que um copo alegre
está cheio de mar.

Eu tenho uma alegria,
jangadeiro!
Estoura rojão na praia.
Eu tenho um rojão,
jangadeiro!
Estouro de alegria não basta.

Chuva tece sombras na areia.
A noite cai em gotas
ao som do mar
e à não-luz do céu profundo.
A noite cai dentro dentro de outra noite
maior que outra noite noite,
baú de sóis em férias.

Tanto de cerveja na praia!,
marinheiro,
um menino vem buscar.

Triste alegria,
ó quão dessemelhante!

Caio de costas,
dou de ombros e pulmões à olhos
por outra cerveja,
ma-ri-nhei-ro.

Largo o chapéu e o paletó de linho branco,
cascas felizes,
e entro no mar.

Quem me ensinou a nadar,
Quem me ensinou a nadar,
Foi, jangadeiro, foi, jangadeiro,
Foi nossa mãe Iemanjá!

Eu tenho uma alegria!
As ondas respondem
“xiiii!”
Eu tenho uma alegria...
As ondas escondem,
tem pena de mim.

Marinheiro...

Eu tive uma alegria,
onça pintada no dia.
Eu tive uma alegria,
as coxas moldura da mão.
Eu tive uma alegria,
levanto, dinheiro é facão.

Ai, quando vim da minha terra
despedido da bataia
eu entrei na capital
numa indústria de maia
lá tinha mais um “Patrão”
e vivi pela navaiaiaia.

Escorro entre tropeços e quedas
até o telefone público.
Burguesia, viaturas espreitam-me.
Se segura, malandro,
pra ganhar esse otário tem hora.
Chapéu na cabeça.

A alegria morreu,
o que será de mim?
Manda buscar outra, Maninha,
lá no Piauí.

Ir para Bachianas Brasileiras nº4 - Prelúdio

um mito




I

Tenho uma alegria,
mas não sei qual, nem sei porque.

Se tenho felicidade em mim,
bicho perto de sumir,
vou descendo a ladeira
e sorrio meu melhor chapéu.

Felicidade é onça pintada na rua,
meu chapa:
pode ser que te enriqueça,
pode ser que te devore.
E onça é bicho ligeiro:
corre para longe,
ou vai pegando em cada mão
e felicitando o novo dano
(leva qualquer dos dedos
compra um pedaço d’alma).

Tenho uma alegria
e vou flanando pela rua
por entre casas bares y calles,
coxas coches e cochos.

Dá-me o dom do cantar,
marinheiro,
que eu te ensino a navegar!
Faça o som do flanar
brasileiro
que eu te ensino a versejar!

Retiro o azulejo com cuidado –
não sem nenhuma dor, faca de ponta –
e vou encaixando nas fachadas
corroídas por silenciosa guerra,
descaso.
Meu sorriso fica
nas paredes dos sobrados,
vou correndo atrás dela
e sobram meus rastros.

Havia um céu,
havia um chão...
A via e desconhecia outros
fenômenos naturais bestas
de mais dia menos dia:
zero,
mas fica a felicidade pendendo
para baixo.

Vestido azulejado,
cabeleira voando: “avia!, batuqueiro”.
Sorri por entre vielas velhas e velas
de um velório qualquer
dia desses

Quando eu morrer
eu quero coro e guerra,
quero uma estátua amarela
e praça com o nome dela.

A parede te veste bem, morena.
Teus braços são moldura, meu preto.
Suspiro é paixão ou cansaço, minha nêga?
É cansaço depois da paixão, ligeiro!

Não. Sim. Sobrado abandonado. Sobram beijos, mulato. Meu nome é “Sempre que Quiseres”. Não. Sim. Sim. Na rua perto do porto. Litro de cachaça. Vestido é para tirar pela cabeça. O amarelo tatuou os cabelos. Cama é para ranger. Paixão é para queimar em fogo vivo, vivo!, vivo!, vivo!. Frevo. Sim, Sim!, Sim!, Sim!. Fervo.

Suspiro. Moldura do suspiro, rosto. Moldura do rosto, seio. Moldura do corpo, cama. Moldura da cama, trama. Moldura da trama: São Luís, Fortaleza, Recife...

Chove.
Ela corre para um lado
e eu lado para um corro...
Corrimão no seu corpo,
fio amarelo de gemidos.

sexta-feira, 19 de março de 2010

!


a chuva é exclamação
por natureza:
da altura que lhe tinha
deixa uma vereda saudosa,
cicatriz úmida.

são os céus que têm olhos,
diz a gota que passa.
são os céus que têm boca,
gota passageira de outra
gota
gota
gota

rouca é a voz do céu
diz meu ouvido que
ouça...
é o despir-se da roupa
(antes, descem vestidas
naquele som ligeiro
de palavra não dita
ainda).

quando chegam, a porta aberta,
sorriem satisfeitas para o amado:
do corpo nu vê-se a alma.
e se completam em som, espanto e sexo.

sábado, 6 de março de 2010

madrugada

IV

acordo com um pressentimento,
uma metáfora que berra
com ferro madeira cimento:
bancos são as ancas da terra.

quarta-feira, 3 de março de 2010

madrugada

III

Folhas,
folhas que caem amarelas
por entre postes caolhos
e neons adormecendo.

Levanto.
É ela que levanta vôo na praça,
e corro – menino inventando brinquedos.
Fazemos um bailado,
ela gira, gira, gira
o vestido de ar e folhas.
Ponho a mão na cintura verde,
mas ela foge, corre para baixo das árvores
a girar, a girar
e ganha corpo.

Observa-me por entre poeira e jornal.
Baús com palavras não ditas.
Travesseiros que voam sós.
Cabelos que saciam sede.
Relógios que se enganam de propósito.

E eu tropeço no meu próprio sonho.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

madrugada


II

Passo.
Por que “passo” parece “passado”?
Paro.
Dou um passo e o passo é passado.
Ajoelho-me na calçada e procuro:
Não há vestígios do meu passo.
Passo pesado. Revejo:
Não há vestígios do meu passo.
Não há dúvida, passo é passado.

Quando ando, deixo um pé de lembrança.
O outro que foi também será passado
Pelo mesmo passo que ficou de lembrança –
Confuso.
Como o passo que darei ainda será já passado?

Desço a calçada e piso na areia.
Passa um riso no meu rosto:
É que ficou meu passo no chão,
Assim, passado.
Eu o observo com carinho,
Um pequeno sinal meu na madrugada.

Mas essa marca é tão tímida:
Passo a mão no passo,
Fica o risco dos dedos.
Sentado na calçada, brinco com a areia.
Então eu posso deixar-me no mundo?
Então eu posso ser hora tênis, hora mão?
Hora: uma hora, vento frio.
Ora, quede o namoro de meus dedos com o pé?
Quede os minutos que dediquei aqui?
Quede o investimento em sonho e tempo?

O que deixo de mim no mundo?
Deixo pequenas coisas que mudarão:
Constelações de utopia nascendo,
Arquiteturas de paixões antigas,
Serenos das nuvens do pensamento.

Mas os poemas não são passos,
Nem sou eu um passo,
Nem é minha vida um passo,
Apesar de passageira.
O que deixo é o que sou
E o que eu quero ser.

O que deixo é o que o mundo não é
Mais
O que deixo é o que o mundo não é
Ainda
Que passe que vá meu nome

Fica a camada de mudança
Que vivi em palavras, abraços
E folhas amarelas que caem
Anonimamente.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

madrugada

I

Hoje, resolvi caminhar pelas ruas
Só.

Vesti uma camisa qualquer com qualquer calça;
Mas não eram quaisquer retalhos,
Eram pedaços de sonho,
Sonho inteiro,
Que cobriam os rasgões da roupa.
Cubro meus pés com tênis,
Como se fosse sair.
E saio.

É madrugada e faz frio,
O que é um milagre por si
Só.

A rua não cabe na rua quando a noite é maior:
Se não passam carros, motos, gente,
Que diferença há entre a calçada e a rua?
Não falo das árvores, da pele do chão, das paredes,
Das listras...
Falo de falarem os veículos e os pés.
Mas se passo, se estou na rua
(outra rua, sentido maior. Rua: o que não é casa),
A rua é rua, a calçada é calçada.
Eu tenho o poder de definir as coisas,
De dizer “É” –
Mesmo alta a madrugada;

Mas também quero desdefinir...
Quero dizer que o céu não é o céu:
É um quadro onde desenho com os dedos,
Ou uma noite estrelada de Van Gogh.
Já disse também que o céu é o corpo dela
De sinais brilhando como estrelas.
O céu não é o céu: são as bochechas, olhos e boca
Do universo.
Mas como pode o céu cheirar a saudade?
Saudade da infância no sítio,
Saudade de tu e de mim em janelas à noite, celular.
Isso tudo me faz pensar que o universo
Tem também um nariz: o meu, hoje.

E, pensando, nem me dei conta que estive parado.
Estive parado numa calçada. Latem cães.
Tremem de frio estrelas.

domingo, 24 de janeiro de 2010

verdades

Se te imagino céu,
teus sinais são estrelas
que se acendem vivas
pelo corpo.
Não desejo que essas estrelas
caiam,
desejo um céu cadente
saindo de si
com dois braços
e uma palavra, talvez.

Se te imagino mar,
tuas ondas são beijos
que escondem mordidas
em si.
Eu busco as conchas na areia
onde, vez por outra,
virá tua voz com a boca,
tu findarás o som
com os dentes.

Se te imagino escuro,
abraço-me com teu vulto
debaixo de alguma árvore
e perco a mão no ar,
e lanço minhas piadas
no ouvido da noite.
Dirás que é tarde,
tomarei o velho caminho
da calçada da fábrica.

Se te imagino metal,
outra vez tomo as bigornas,
durmo ao lado das caldeiras
e protesto contra o patrão.
Não quero trabalhar-te
num mundo que não seja nosso:
entrego o pingente
numa terra mais livre.

Se te imagino como és,
não cabes no corpo que tens,
não sou aquilo que era.
Se te imagino como és,
amiga, eu sou teu
amigo desfilando verdades
que vibram debaixo do teu nome.
Sou teu
cantor, e canto.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

eu te quero escrever um poema,
mas te desejo antes dele.
desejo-te, também,
antes de querer-te.

estás em mim antes das palavras,
antes dos desenhos da cabeça,
e do fogo batendo no peito.

estás em mim
como a essência nas coisas,
como o vôo antes das asas
e como a vida cantando
dentro da vida.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

para ficar ("n")

passarei os olhos
no amor calado,
cá ao lado,
mas que me toma os dedos
e que me cala a voz
e que me queima os olhos.

passarei os dias
sem saber o que dizer,
se disser,
sem saber o que fazer,
se fizer,
sem saber se vou te ver,
se viver,
se vier.

passarei vergonha
de ter essa pedrinha
e não saber a janela
que guarda teu sono.

passarei batom
nas minhas palavras,
perfume nos meus passos.

não permita, Amada,
que eu passe sozinho,
que eu passe fadado
a mais um poema assim:
de noite e cansaço,
de cansaço sem fim.

encontrei esse poema num envelope papel madeira que tenho por cá. nem lembrava dele, mas gostei de cara da simplicidade. mudei algumas coisas: retirei as maiúsculas (menos uma), acrescentei o "('n')"... deixei o essencial e não me preocupei com a métrica: de outra forma, o poema não seria mais o que (eu) era.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

viela

Eu sempre fui menos rua,
mas eu nunca mais viela:

(Procuro o peso do vento
em quilos de liberdade,
com fôrmas que vem do dia
e cores que cem da vida.

E para pesar palavras
Só sei que é preciso pôr
cada semente na boca
e esperar que venha flor.

Fui buscar a poesia
num pântano sei lá onde.
Puxá-la pelas orelhas
Quando de mim se esconde)

Porque eu nunca mais vi ela,
sempre estive mais pra rua.