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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



domingo, 18 de março de 2012

um sopro

um poema não precisa, necessariamente, ter compromisso com a verdade,
o poema só precisa,
e que a verdade não resista
sendo já a mentira de ainda a pouco


i

sei que há palavras por soprar
entre teus cabelos inalcançáveis.
sei que há versos que não foram ditos
sobre o caminho vermelho das tuas unhas.

sei, ainda, que estas não são
quaisquer palavras de algum amor;
sei, também, que aqui não se move
o frêmito doce da lembrança.

ou nem bem havia loiro,
ou nem bem havia dedos,
ou nem sei se havia sopro.

ou nem se passaram horas,
ou nem fugiram as estrelas,
ou nem há mesmo uma dúvida.

ou isso tudo é mentira,
ou isso tudo é bobagem.
ou é bem mais do que vejo:

isto – sem nome – é desejo?


ii

mas não pergunte o que o sopro leva consigo.
não tente, com os dedos, encontrar palavras sobre a nuca.
não produza mapas dos mundos inventados por tuas mãos.

o sopro é tão-somente a intenção do sopro,
e as palavras, talvez, sejam uma linguagem falida,
como falida é a falta delas.
as palavras são menos que a intenção das palavras.

segunda-feira, 12 de março de 2012

pequena história das duas décadas – VIII

ou “esse exílio”

eu não sou eu.
eu mentiria se assim dissesse.
eu nunca poderia
apenas eu.

eu sou os que me multiplicam.
sou a rua onde vivi,
sou as ladeiras que corri,
sou as cercas que pulei
e até as dores que doeram:
sobretudo as que cantei.

não sou apenas estas duas marcas
nas encostas do nariz.
eu sou todos os óculos,
todos os rótulos,
que ficaram para trás:
cada perna quebrada,
a armação empenada,
cada milagre que bailou nas lentes,
nos olhos que a vida ainda guarda.

eu sou as linhas da minha casa,
e toda a tinta passada
que a umidade derrubou da parede,
mas não de mim.
eu sou o quintal que já teve grama.
foi ali, deitado naquela cama,
que versos e sonhos rodopiaram
primeiras, segundas, terceiras vezes...

e eu sou a descoberta do mundo,
esteja ele em qual esquina
estivermos.
mas só me interessa descobrir um mundo
que os homens tenham descoberto.
só me vale inventar um mundo
onde o leite e a luz sejam
as mais evidentes leis.

eu recolho a terra
e as folhas de hortelã.
guardo-as num frasco
mais uma vez.

ponho, outra vez,
os mundos na mochila, nas costas,
as costas nas asas do pau-de-arara.
tomo a tua mão
e a multiplico em pães, peixes e versos.

imitando aquele velho do filme,
eu laço aquilo que amo
com balões mil vezes coloridos
e tudo trago nos dedos, na pele,
na voz.

se voo ou se ando,
se improviso ou se plano,
não sei, não saberei.

cheirando à terra,
bêbado de perfume
sei que vou,
tantas vezes mais:

entre varedas,
eu me exilo
cantando.

sexta-feira, 2 de março de 2012

toda poesia é estrada

comecei o blog com este poema (de 2009) e achei que deveria repeti-lo agora, nas vésperas de torná-lo carne mais uma vez.


eu parto a mim
mesmo
ao partir.

metade do corpo
num século
metade
n’outro
minha alma pela cordilheira:
um pacífico de frio,
uma américa de sangue.

eu recolho a terra,
guardo num frasco.
misturo com alguns cravos
e cascas de romã,
junto com o hálito do vento,
vento da voz dos teus cabelos,
amiga.
guardo minha essência.

jogo o mundo nas costas e
as costas na carroceria –
em caminhos e caminhões
galopo no dorso
do tempo.

corre, meu mundo,
que meu sonho é minha sela
e na casa dos meus amigos
há água!

anda, velho parceiro,
caminha sempre ao meu lado.
casa tuas mulheres fortes
com meus poemas frágeis.

no meu exílio,
não cabe choro, nem vela,
cabem fitas amarelas,
cabem nerudas na mochila,
cabem piazzollas nos ouvidos,
taças de vinho na língua.
cabe a lembrança de ter vivido
e de viver ainda.
cabe o fardo de saber-se humano
e ter compromisso com a primavera eterna
primavera porteña
depois de uma vida invernal
e do fado de saber-se brasileiro.

no meu exílio,
exilado mas residente,
cabe o beijo
de descobrir-se conterrâneo
de cada pessoa
em cada canto.

entre veredas,
eu me exilo
cantando.

(do "SéculoXXIpoemas")