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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



quarta-feira, 31 de março de 2010

satanás

velho branco viajando de longe,
mascate mouro de barba arruivada,
olhos puxados, lábios grossos,
bate na porta de casa,
sorri honestamente um copo d'água.
Cheira à canela.

segunda-feira, 29 de março de 2010

um mito




II

Eu tenho uma alegria
e ela pode muito bem caber
nesse alpendre improvisado
nessa cadeira de ferro
nesse copo de cerveja.

E é sempre bom lembrar
que um copo alegre
está cheio de mar.

Eu tenho uma alegria,
jangadeiro!
Estoura rojão na praia.
Eu tenho um rojão,
jangadeiro!
Estouro de alegria não basta.

Chuva tece sombras na areia.
A noite cai em gotas
ao som do mar
e à não-luz do céu profundo.
A noite cai dentro dentro de outra noite
maior que outra noite noite,
baú de sóis em férias.

Tanto de cerveja na praia!,
marinheiro,
um menino vem buscar.

Triste alegria,
ó quão dessemelhante!

Caio de costas,
dou de ombros e pulmões à olhos
por outra cerveja,
ma-ri-nhei-ro.

Largo o chapéu e o paletó de linho branco,
cascas felizes,
e entro no mar.

Quem me ensinou a nadar,
Quem me ensinou a nadar,
Foi, jangadeiro, foi, jangadeiro,
Foi nossa mãe Iemanjá!

Eu tenho uma alegria!
As ondas respondem
“xiiii!”
Eu tenho uma alegria...
As ondas escondem,
tem pena de mim.

Marinheiro...

Eu tive uma alegria,
onça pintada no dia.
Eu tive uma alegria,
as coxas moldura da mão.
Eu tive uma alegria,
levanto, dinheiro é facão.

Ai, quando vim da minha terra
despedido da bataia
eu entrei na capital
numa indústria de maia
lá tinha mais um “Patrão”
e vivi pela navaiaiaia.

Escorro entre tropeços e quedas
até o telefone público.
Burguesia, viaturas espreitam-me.
Se segura, malandro,
pra ganhar esse otário tem hora.
Chapéu na cabeça.

A alegria morreu,
o que será de mim?
Manda buscar outra, Maninha,
lá no Piauí.

Ir para Bachianas Brasileiras nº4 - Prelúdio

um mito




I

Tenho uma alegria,
mas não sei qual, nem sei porque.

Se tenho felicidade em mim,
bicho perto de sumir,
vou descendo a ladeira
e sorrio meu melhor chapéu.

Felicidade é onça pintada na rua,
meu chapa:
pode ser que te enriqueça,
pode ser que te devore.
E onça é bicho ligeiro:
corre para longe,
ou vai pegando em cada mão
e felicitando o novo dano
(leva qualquer dos dedos
compra um pedaço d’alma).

Tenho uma alegria
e vou flanando pela rua
por entre casas bares y calles,
coxas coches e cochos.

Dá-me o dom do cantar,
marinheiro,
que eu te ensino a navegar!
Faça o som do flanar
brasileiro
que eu te ensino a versejar!

Retiro o azulejo com cuidado –
não sem nenhuma dor, faca de ponta –
e vou encaixando nas fachadas
corroídas por silenciosa guerra,
descaso.
Meu sorriso fica
nas paredes dos sobrados,
vou correndo atrás dela
e sobram meus rastros.

Havia um céu,
havia um chão...
A via e desconhecia outros
fenômenos naturais bestas
de mais dia menos dia:
zero,
mas fica a felicidade pendendo
para baixo.

Vestido azulejado,
cabeleira voando: “avia!, batuqueiro”.
Sorri por entre vielas velhas e velas
de um velório qualquer
dia desses

Quando eu morrer
eu quero coro e guerra,
quero uma estátua amarela
e praça com o nome dela.

A parede te veste bem, morena.
Teus braços são moldura, meu preto.
Suspiro é paixão ou cansaço, minha nêga?
É cansaço depois da paixão, ligeiro!

Não. Sim. Sobrado abandonado. Sobram beijos, mulato. Meu nome é “Sempre que Quiseres”. Não. Sim. Sim. Na rua perto do porto. Litro de cachaça. Vestido é para tirar pela cabeça. O amarelo tatuou os cabelos. Cama é para ranger. Paixão é para queimar em fogo vivo, vivo!, vivo!, vivo!. Frevo. Sim, Sim!, Sim!, Sim!. Fervo.

Suspiro. Moldura do suspiro, rosto. Moldura do rosto, seio. Moldura do corpo, cama. Moldura da cama, trama. Moldura da trama: São Luís, Fortaleza, Recife...

Chove.
Ela corre para um lado
e eu lado para um corro...
Corrimão no seu corpo,
fio amarelo de gemidos.

sexta-feira, 19 de março de 2010

!


a chuva é exclamação
por natureza:
da altura que lhe tinha
deixa uma vereda saudosa,
cicatriz úmida.

são os céus que têm olhos,
diz a gota que passa.
são os céus que têm boca,
gota passageira de outra
gota
gota
gota

rouca é a voz do céu
diz meu ouvido que
ouça...
é o despir-se da roupa
(antes, descem vestidas
naquele som ligeiro
de palavra não dita
ainda).

quando chegam, a porta aberta,
sorriem satisfeitas para o amado:
do corpo nu vê-se a alma.
e se completam em som, espanto e sexo.

sábado, 6 de março de 2010

madrugada

IV

acordo com um pressentimento,
uma metáfora que berra
com ferro madeira cimento:
bancos são as ancas da terra.

quarta-feira, 3 de março de 2010

madrugada

III

Folhas,
folhas que caem amarelas
por entre postes caolhos
e neons adormecendo.

Levanto.
É ela que levanta vôo na praça,
e corro – menino inventando brinquedos.
Fazemos um bailado,
ela gira, gira, gira
o vestido de ar e folhas.
Ponho a mão na cintura verde,
mas ela foge, corre para baixo das árvores
a girar, a girar
e ganha corpo.

Observa-me por entre poeira e jornal.
Baús com palavras não ditas.
Travesseiros que voam sós.
Cabelos que saciam sede.
Relógios que se enganam de propósito.

E eu tropeço no meu próprio sonho.