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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



quarta-feira, 4 de agosto de 2010

a lista - uma introdução

Quantas coisas se aprende nessa vida. Dentre as tantas (?) que aprendi, as que desaprendi foram as mais importantes – Manoel de Barros estava certíssimo. Tristeza maior é não dar-se em todas as horas do dia para, num “esforço” de borboleta voando, desaprender.
Desaprender admite tantas formas... Mas duas em especial. Numa delas, crescemos porque aprendemos ao avesso – tocamos aquele núcleo poético das coisas e das gentes –, é o inverso; noutra, desaprender equivale a alienar-se, afastar-se da realidade tomando o que se diz como real nas suas últimas conseqüências – aqui, “desaprender” é renunciar à consciência crítica. Consiste tarefa dos que se põem ao lado da humanidade (ou da parte humana dela) desaprender na primeira concepção para falsear a segunda. Não se trata de um hino ao realismo, naturalismo, realismo socialista, ou qualquer outra forma estética, ou de literatura engajada; mas também não se trata de, no maior devaneio formalista e parnasiano, isolar a literatura da vida real dos homens e quedar falando de vasos chineses, ou gregos – ourives imbecil.
Em última instância, trata-se de subverter as estruturas para, de dentro delas mesmas, florescer algo novo, humano – aquela flor que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”, apesar de feia. Aqui, nessas linhas bestas, se trata justamente do ódio, não daquele ódio que mata homens, prepara arapucas e se perde nos seus próprios termos... É o ódio naquele sentido de subverter para (re)inventar, é tornar em matéria de poesia para, oxalá, mudar a matéria. E foi Carlos que disse: “Ao menino de 1918 chamavam anarquista./ Porém meu ódio é o melhor de mim./ Com ele me salvo/ e dou a poucos uma esperança mínima”. Não é por acaso que em “A flor e a náusea”, o poema de Drummond em questão, depois do ódio vem a flor no verso seguinte: “Uma flor nasceu na rua!”. Existe um ódio que traz dentro de si a flor.
Sem mais delongas, descobri que existe uma lista (perderam tempo, e folhas, com isso) dos 30 cearenses mais influentes em 2010. A revista “Fale”, publicação cearense, completa 10 anos de “publicação ininterrupta” em setembro e, comemorando, elaborou a tal lista onde figuram personalidades como Tasso Jereissati, Adísia Sá, Airton José Vidal Queiroz, Ciro Gomes, etc. Do link acima: “Mesmo assim, creia leitor, nossa lista não é sobre a influência do poder mas sobre o poder da influência”. Marx e Engels, que costumavam usar esses jogos de palavras (“A crítica das armas” e “As armas da crítica”; em Hegel, do “céu” à terra, no materialismo histórico, da terra ao “céu”, etc), tremem nos túmulos diante dessa versão piorada do artifício lingüístico e dialético. Carece tremer, não.
Se a lista é sobre “o poder da influência”, o que caracteriza e determina a influência? Olhando a lista, escolhidos os cearenses pelo voto popular, fica fácil descobrir: ser um “arauto do capital”¹, um “honorável bandido”², ou um Benedetto Croce ³ cearense.
Eu fiquei me perguntando se foram, realmente, esses homens e mulheres os mais “influentes”. Eles representam os cearenses? E as duas perguntas mais poderosas já inventadas pelos anjos tortos: influentes por que e para quem?
Acontece que o inverso das coisas tem o poder de iluminá-las, o que equivale a questioná-las. Eis-me aqui questionando essa lista e bordando a minha. Voltei-me para o passado e percebi que ele ecoava, tambor batendo. Nas vielas, salas, vazantes, capoeiras, mercados, rodoviárias, colégios, praças e campos de lírios (“Os lírios não nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra”) eu encontrei 30 cearenses. Não sei se são mais influentes que aqueles, não sei se ganhariam mais que dez votos, mas sei que teriam o meu. Bordo a lista em poesia, mas não dou um nome à forma, deixo para os leitores, mais capazes que eu. Assim, ao olhar para o passado também falo “Sobre essas coisas sem jeito que trago em meu peito e que eu acho tão bom”. A lista seguirá nas próximas postagens com o nome "Os 30 cearenses menos influentes".
Oxalá, um dia, esses homens e mulheres sejam reconhecidos como o retrato do povo cearense e ganhem o que não foi seu até hoje: o Ceará nos seus campos, serras, praias e poesia. Oxalá.


¹ A expressão é do filósofo marxista húngaro István Mészarós (1930-). Refere-se àqueles que, nas suas atividades, reproduzem ou contribuem na/para a reprodução do “sistema sociometabólico do capital”
² A expressão é de Karl Marx (1818-1883), mas foi utilizada recentemente pelo jornalista Palmério Dória num ótimo livro sobre José Sarney e a sua família (o livro se chama “Honoráveis Bandidos: um retrato do Brasil na era Sarney”).
³ Benedetto Croce (1866-1952) foi um pensador e político italiano. Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo e político marxista italiano, dedicou parte dos seus Cadernos do Cárcere à análise e desconstrução do pensamento do autor. Gramsci o classificou como um “intelectual tradicional”, aquele que está ligado organicamente aos interesses das classes tradicionais. No que nos interessa nesse paralelo, basta dizer que jornalistas, homens ou mulheres, cumprem bem essa função.


"Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!

“Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir"

- “Nosso Tempo”, Carlos Drummond de Andrade.

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