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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



segunda-feira, 17 de maio de 2010

o curso




bateu o cigarro no cinzeiro.“vamos ao método. primeiro, folhas e papel. terá de haver também algum cimento preparado com suor ou sangue”. deu uma tragada tão profunda que a fumaça pareceu tossi-lo. “em lima, tentaram usar sangue de morcegos. infrutífero, métodos medrosos: deve ser o nosso. dos escravos não, barão. agora... isso, anote. deve chamar um contrabaixista, um violoncelista e um bandoneonista, donde se vê que o espaço deve ser considerável. também trazê-las logo depois de verem os corpos das suas crianças. sim. isso mesmo, casa isolada, ou isolar o som”. o senhor já sexagenário bateu a xícara no pires – décadas mais tarde alguns dirão que foi medo, outros, parkinson. um jovem brincava com a costeleta, outro anotava vigorosamente até os silêncios: folhas e folhas em branco.
“de preferência meninas: uma branca, no máximo. pois bem... é preciso um grande birô... as paredes? como são detalhistas! o segredo é não serem todas brancas. azulejos são terminantemente proibidos. aliás! são permitidos, anote essa variação: deixa-se uma parede com azulejos brancos e quebram-se dois ou três tijolos na parede oposta, que deve dar para o sol. dessa forma, dois, ou três, fachos de luz entrarão tortamente e incidirão no branco, assim o quarto ficará mais escuro... claro, nada como um oposto para confirmar o outro. pois bem... seria bom que pusessem alguns cavalos no cômodo acima, de sorte que, quando correrem, cairá uma poeira fina que atravessará os fachos produzindo um efeito desolador...” o dono do bar explicava para dois clientes barulhentos que o espaço havia sido reservado pelo barão e o senador – os três jovens estudantes e o padeiro eram dispensáveis da justificativa. “tinto, por gentileza”. fez-se silêncio até a chegada.
“pois bem, jovens, que mais querem saber? tudo? como ‘tudo’?! eu já lhes dei todos os ingredientes, que mais querem? não acham que vocês podem se virar muito bem juntos...? é fato... com o cimento vocês erguerão a casa, donde se percebe que é trabalho para anos e anos de hemorragia; e também de corrida ao redor da praça do imperador – aconselho o uso de garrafas de vidro, que devem ser balançadas constantemente, no primeiro caso, toalhas, no segundo”. o padeiro calculava o custo das garrafas em croissants, o jovem médico achava que ninguém perceberia (nem ele) se roubasse o sangue dos pacientes, o advogado... o advogado calculava os anos de encarceramento e as melhores formas de esconder as evidências. “bom, senhores, é tudo. o papel deve ser amarelo e a caneta, preta – isto é crucial! espero que nos encontremos em breve e que dessa vez vocês me vejam... sim, me provocam, mas são tão míopes que fazem do umbigo um muro... se não conseguirem assim, só resta a amora sobre o caixão, ou o clichê da dúzia de flores vermelhas, mas já nem importará tanto, não é?” riu enquanto apanhava a bengala e o chapéu. “no mais, vocês sabem que chegará um tempo em que não vai ser tão fácil... ou será... será, mas o gosto também será outro. e minhas roupas também”. exatos três segundos de silêncio, como foi previsto, e voilà: “importar-se-ão menos que hoje... os senhores vão me desculpar, mas é chegada minha hora”, tomou o resto do vinho, “há muitos campos de batalha para visitar, muitas amantes sobre parapeitos, mares salgados, navios negreiros, bondes perdidos, goteiras, passarinhos, capoeiras, inconfidências, construções, verde... finda aqui nosso curso, gentlemen”.
na calçada, acendeu mais um cigarro e pensou que aquela roupa o incomodava. viu os bondes lotados... brancas pretas amarelas... para que, no fim das contas? viu o escarro infinito das chaminés e as caras enlameadas dos negrinhos. pôs a mão na cintura: chapéu francês observa vitrine. riu um riso que caiu no canto da boca e saiu voando pelas ruas que levam ao porto.
“o pior é que eles precisam de receitas até para isso...” enfiou o cigarro em uma maçã e a enroscou num poste, assim a calçada ficava mais bem iluminada, julgou. miseráveis.

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