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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



domingo, 30 de janeiro de 2011

pequena história das duas décadas - VII

subíamos os pés de siriguela
não pelas frutas,
mas pelo prazer aéreo
de subir

tocávamos campainhas
quando não tínhamos motivo
para correr. e corríamos
sem sorrir para trás,
mas para o mundo
que nos esperava na esquina

nuvens de cabelos
rios quando chovia
cicatrizes da guerra em paz
bola nas ruas
pés no muro branco
cavar trincheiras nos quintais
monstros imaginários
pistolas de pressão
ondas tantas de pular
sobremesa escondido
fantasmas nas ruínas
papagaios nas gaiolas
cavalete feito com bananeiras
poesia nas perguntas
baladeiras e bornós
cachoeiras de suor
em que escorria o tempo
para hoje banhar-me

ao fechar os olhos
e soltar os ouvidos

quando os joelhos de duas décadas
sobem ladeiras
quando corto o cabelo
no mesmo lugar
quando diviso pipas
que meu peito não guia
quando me vejo nos tantos espelhos
mundo à fora,
e eu dentro de cada um deles
sendo diverso do que fui,

mas ainda um menino do Brasil
sofrendo outros castigos,
correndo outros caminhos,
descendo outras ladeiras
do mesmo coração de poeta,
que, encantado,
sorri

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

lírico

à memória de Luiz Claudio

Ontem, morreu um maldito.
E se morreu porque viveu,
“Maldito” era por ter vivido
Em demasia, aos pulos, em poesia.

Ontem, morreu um maldito,
E maldito era por saber
Que a vida é mais que o menos
A que se vê reduzida
Nas sarjetas, nas fazendas, nos guetos,
nas ruas em que se vendem os homens
publicamente.

Ontem morreu um maldito,
Morreu um velho coração anarquista,
Mas não morreu o vermelho que bombeou
Num mundo sem sal, sem cor, sem fé
Que pode ser outro mundo.

Morreu, ontem, um vagabundo
Que debochava dos hipócritas
Ao mostrar o que escondiam,
por vergonha, ou por convenção,
Atrás dos próprios olhos.

Morreu, ontem, um vagabundo
Cuja metodologia era o whisky
E os óculos escuros,
Mas também as pichações nos muros.

Morreu, ontem, talvez,
O último dos líricos (não confesso)
Num mundo sem lirismo,
O último dos profetas
Num mundo onde o futuro
É repetição,
O último dos revolucionários
Num mundo sem revolução.

Mas morreu ontem, também,
O mentor de um sem número
De jovens curiosos, mendigos.

Em cada noite nos bares,
Em cada tarde ouvindo Chico Buarque,
Em cada derrota no tabuleiro,
Em cada pf no Garça,
Em cada compra com vales,
Em cada discussão literária,
Em cada aula nas salas de educação bancária,
O que nos ensinava não era,
Justamente,
A plantar sobre o concreto?
A alçar vôo com os tênis?
A criticar os críticos?

O que soube mesmo
Foi incomodar:
Mosca na sopa,
Pedra no sapato,
Ode ao burguês.

Mas se também nos ensinou,
Entre piadas e gritos,
A ser irresponsavelmente líricos,
A profetizar o futuro no passado,
A revolucionar-se uma vez por segundo,
Não ouso mais dizer que morreu:
Cerraram-se as pálpebras
Para abrir-se o livro da História.

Hoje,
Entre filetes de ouro esverdeado
E bordas vermelhas nas linhas,
Vejo um dedo da sua cotidiana ironia
Em cada verso que concebo.

E se, agora, não sei terminar esse poema
É porque o mestre que viveu ontem
Não quer que ele finde,
Não quer que findemos
Até que o mundo faça do lirismo –
Do doce lirismo da igualdade –
A matéria cotidiana dos abraços, do trabalho
E do copo de whisky sobre a mesa.


numa madrugada de janeiro ouvindo Piazzolla.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

sobre as asas à noite




eu lanço palavras no ouvido da noite
e ela responde em vento, nuvens e som;
responde em palavras alheias
que me aparecem juntas.

travamos um diálogo
e apostamos a vida um do outro
como em jogo de meninos.
bêbados, juramos que o mar
seria nossa derradeira garrafa
se perdêssemos.

guardamos três passos de distância,
guardamos um riso triste no canto
da boca
e nos olhamos no silêncio das ondas –
há qualquer coisa que não entendemos.

madrugada,
quantas vezes beijei teus lábios,
quantas vezes caminhei
embriagado dos teus perfumes:
o jardim no escuro,
a chuva no asfalto,
os becos do amor secreto,
o rugido da maré,
os gritos na delegacia,
a fé

e um tal Bob Dylan
declamando os direitos civis
no meu cd player.
só quero esse mesmo direito, mamma:
cantar as asas dos homens.

e você sabe que é difícil
cantar tão alto
quando a vida
puxa tão baixo.

mas eu sei, pela poesia,
imaginar quatro cordas
em cima da pouca altitude
a que me trouxe a vida .

você se ri do artifício, oh , sister,
e perde lindamente a aposta,
pois não sabe como fiz uma palavra
florescer da imundície de outra.

afogas a boca no
mar,
e é como se, aos poucos,
nascesse uma manhã.

bato a areia das roupas,
bato a testa na luz do dia
e acendo um cigarro nela
enquanto sorrio um gole...
sou um bêbado calmo
praia acima,
pois sei
não haver sol que queime
as asas que os homens aprenderam
na noite que existe
em cada olhar seco,
em cada sorriso amarelo,
em cada flanelinha baleado,
em cada homossexual violado,
em cada filho morto pelos policiais,
em cada negro sentado no fim do ônibus,
em cada noite.

sou um bêbado (im)paciente rua acima
e sei não haver sol que queime
asas rabiscadas entre fogo e sangue
para pisar o céu logo depois de
varrer o chão.


João Pessoa – Dezembro de 2010
Acopiara – Janeiro de 2011