,

"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

fortaleza minha

fortaleza minha
suja de braços fora de carros,
catarros fora de narizes
e uma multidão de folhetos
de lojas,
de colégios,
de concursos -
de.

vai água tanta (pouca),
varre os sacos plásticos
e a cera dos ouvidos,
varre a botina dos oficiais
e os carros do ano,
varre os panos da loja de confecção,
varre esse calor-suor.

e joga
no bueiro,
nos esgotos-cabeça-de-alfinete,
nos prédios da Aldeota,
nos palacetes
e nos cacetes gringos funcionando
re-gu-lar-men-te
nas praias e nos motéis.

joga
no Canindezinho e no Planalto Airton Sena,
dentre outros tantos,
afoga as sinucas
e derruba as pontes
e as cumeeiras das casas
no meio de um sonho-sorteio,
ou de um programa policial.

fortaleza ralo entupido
(espirro de corpos
dos desabamentos
em lenços-caixões
descartáveis),
limpa a sujeira do teu nome
e sê forte para todos os teus
homens.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

clandestino

sou, antes, um vulcão verde
de onde pulam sentimentos
em flor.

verde, se são para ti,
flor, se sossegam na boca.
sorriso.

deita o ouvido em meu peito
e ouve.
ouve, pois é para ti
que, dia após dia, bate
clandestino o coração.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

salada de cacetes (poema sem delicadeza)

salada de cacetes
no prato-multidão.
os talheres castigam
raízes, folhas, frutas
ao som da batucada.

mãos que agarram camisas,
pancadas nas costelas
(brócolis
CROC!-ante)
e borrifos-tomate de sangue.

a fila indiana do jantar
segue cabisbaixa
(não gritam como os porcos)
por vielas e ladeiras.

a beterraba do olho acertado,
o pus-mostarda escorrendo,
o sêmem-couve grudado às roupas –
o “passatempo” de noite e de medo.

a nuvem de pernas, braços e gritos:
o abacate-bílis pin-
ga
sob as estrelas,
brancas-alho das bocas.

bandido bom,
bandido
morto!

come, justiceiro,
gourmet do Estado,
sommelier das veias,
que o gosto da fome-cacete
é doce
(os aplausos são de açúcar).

sábado, 19 de dezembro de 2009

lençol de pétalas

tanta matéria em minh’alma
tanta alma nessa matéria:

voando com beija-flores
pousar, cheiro, em teus ombros;
pedras tantas de meu sonho,
pedes tanto que meu sonho
é sonhar levar-te, quando?;
carro caro de comprar
cravo, bravo!, de se dar;
dou-me em vento, dou-me em barro:
dar-me a ti sem nenhum prazo.

ver que entre alma e matéria
o produto é teu abraço.

diamantes

Agora,
Será agora:
Nem antes, nem depois
De agora.

Agora, sim:
Rufarão agoras de ontem,
Lembrança;
Virão agoras de amanhã,
presságio,
Para compassar esse agora,
tão magro.

Derramem as ampulhetas nas cânforas,
Silenciem os pequenos nas ágoras,
Imobilizem as nuvens com âncoras.

Assistamos aos instantes:
Ao primeiro, que é mais rápido,
Ao segundo, muito largo.

Mas antes –
Antes de passar o vulto–
Deixem cair, grãos, o tempo,
Deixem vida, muita, às nuvens,
Entreguem armas aos homens.
Palavras, flautas, caminhos –
Mirantes.

oitocentos erros



Devo escrever um poema
Dentre muitas outras coisas
Que não me são já. Missão.

Posso escrever tal poema,
Se vejo as letras e os sons
Sem qualquer ritmo ou rima:
Eles fazem do que sinto
A sua matéria-prima.

E sentir
É sentar sobre o vivido,
Pôr maiúsculas na vida
E “poderia ter sido...”

Eu imagino metáforas!,
E quanta riqueza têm!
Mas só vai esculpir uma
O poeta que errou cem:

Cem armas na minha mão,
Cem cavalos ritmados,
Cien versos electrizados
Sem ver a quem matarão.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Vida-meia (ii)


(foto de sebastião salgado)

sou a ponte que costura
retalhos do chão marrom
no couro da vida dura
esse riacho onde o sol
descansa sua quentura
vai me devorar a carne;
mas esse céu onde a água
vem pensando a invernada
há de me afogar a boca
quando eu subir aboiando
e deixar a morte louca.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Vida-meia


(foto de sebastião salgado)

a minha vida é tão seca,
seca vida-meia,
vida meio seca,
vida meia, seca.

beber meu suor de cachaça,
tragar cachaça de suor,
a água pontuda da palma,
a palma da mão calejada.

meu gibão de terra e sonho.
o animal de costela e couro
deitado.
meu braço de fumaça e fogo,
Azulão de cansaço e sede
em pé.

essa terra de sol também,
vermelha;
esses galhos de sol também
em cinzas.

a seca é cerca com arame:
é cela em que cavalgo o dia,
é sela em que me monta a vida.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

um poema que fosse

uma queda de peito aberto no asfalto,
uma goiaba arremessada no muro,
uma martelada cega nos dentes,
um gole demorado na cachaça,
uma cuspida longa no rosto,
uma agulha quente no olho.

um poema de crueza única.
uma tradução de palavras
em cor
escorrendo dos poros.

o método da Poesia
é o poeta
sempresempre
sangrando.

teu poema

às seis horas da manhã, o meu poema acordou. veio, jato quente de ar, do poço dos pulmões. às seis horas da manhã, enquanto acordava meu poema, entrava em mim a matéria do mundo – estouro de ar; pipoca no peito o pó grosso da vida –, embalagem abrindo. meu poema, que acorda, recorda todo dia dos encontros passados com a matéria – dinamite de pétalas, jardim de granadas. é que estão presos por corda, o mundo e o meu poema. meu poema – massa de abraços, soma de beijos, vida de suspiros – nos ônibus da cidade. meu-poema-pisando-pés-pisado. toda a fumaça dessa cidade, toda a cidade dessa fumaça – ela tem as suas ruas, semáforos e calçadas; meu pulmão, que não entende. meu sangue, sentindo-se traído, manda reclamar ao coração, que grita compassadamente pelo corpo, que tosse. meu poema não almoça em casa, que é longe e longe é casa, cara; devora algum verso gordo no espaço de uma palavra. meu poema dando a descarga e dormindo em bancos. a ida, o dia... o diabo com essa vida! meu poema tem olhos: os catadores que levam os filhos no carro. a cega que toca “anunciação” no ônibus. seu paulo, bolsa de lado, contando moedas, que me vende revistas por um real – o tio da revista, disse. os pastores de carro banhando as ovelhas e esperando nas sombras pelas sobras. m. o bicheiro, para quem contraventor é palavra azeda, digo poeta de sonhos e símbolos. o guarda da empresa e seu bigode-colete me reconhecendo, óculos preto – futebol se tivéssemos tempo. o senhor que às sete horas acaricia o pote de sorvete com a colher-língua – sumiu, nunca mais vi – estará provando o sorvete das nuvens? os dois olhos do meu poema raspam a camada de indiferença, anonimato. mato o pulmão com suspiros profundos. na grossura do cinza, sei passar a não viver sem ela enquanto passa. meu poema vê o mormaço do asfalto – chora orvalho. meu poema-árvore quer chamar os irmãos para uma tarde em seu regaço. dirão, todavia, que hoje não é dia. meu poema, as cores do que fiz e faço, imagina-se como pátria para todos: campo de manhãs eternas, cascata de amores distantes, rede onde balance a vida.
dorme, meu poema, que há toda uma eternidade para nossa foz de paixões.
dorme, que mereço. cansaço, adormeço.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

companhia

amiga eu te encontro
estás de azul amiga,
listrada de branco
dos pés ao sorriso.

és tão leve e livre e linda
que saltas nuvens.
soubesse escadas,
tivesse outras asas,
seria na tua mesma cor
e desfaria meu corpo –
embalagem, pó.

vento, levaria teu cheiro
por onde andasses,
o branco do Himalaia
e o azul dos oceanos –
canção de pássaros migrando.

mas viajando, amiga,
já estou junto a ti.

sei teu perfume, borboleta,
e sou todo vôo
nas tuas costas, céu –
canção de amor guardando.

toda poesia é estrada

eu parto a mim
mesmo
ao partir.

metade do corpo
num século
metade
n’outro
minha alma pela cordilheira:
um pacífico de frio,
uma américa de sangue.

eu recolho a terra,
guardo num frasco.
misturo com alguns cravos
e cascas de romã,
junto com o hálito do vento,
vento da voz dos teus cabelos,
amiga.
guardo minha essência.

jogo o mundo nas costas e
as costas na carroceria –
em caminhos e caminhões
galopo no dorso
do tempo.

corre, meu mundo,
que meu sonho é minha sela
e na casa dos meus amigos
há água!

anda, velho parceiro,
caminha sempre ao meu lado.
casa tuas mulheres fortes
com meus poemas frágeis.

no meu exílio,
não cabe choro, nem vela,
cabem fitas amarelas,
cabem nerudas na mochila,
cabem piazzollas nos ouvidos,
taças de vinho na língua.
cabe a lembrança de ter vivido
e de viver ainda.
cabe o fardo de saber-se humano
e ter compromisso com a primavera eterna
primavera porteña
depois de uma vida invernal
e do fado de saber-se brasileiro.

no meu exílio,
exilado mas residente,
cabe o beijo
de descobrir-se conterrâneo
de cada pessoa
em cada canto.

entre veredas,
eu me exilo
cantando.

(do "SéculoXXIpoemas")