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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



sexta-feira, 15 de outubro de 2010

pequena história das duas décadas - VI

ou Onde o poeta opera um milagre


O sertão é dentro da gente.
(João Guimarães Rosa)


na d-10 vermelha,
o buraco perto da caixa de marcha
deixava ver o caminho pedregoso,
ou o barro vermelho
que rodopiava atrás de nós.

o cheiro do gás me deixava enjoado,
como me deixavam as manhãs
de solavancos térreos e azulados.
do botijão, hoje sei,
veio o perfume que vez por outra
tenho impressão de sentir
escrevendo um poema,
ou cruzando a 13 de maio.

vezes,
vínhamos do sítio até Flamengo
para assistir à televisão
que ficava em praça pública –
lá na ponta, alta, grande
para o povo que se amontoava
em olhos, pipoqueiros, namorados, chapéus, políticos, cadeiras, cervejas, picolés e bocas,
principalmente bocas.

em várias casas,
os espelhos já estariam cobertos,
com toalhas ou lençóis, quando
as águas que caiam no sertão
escrevessem rios nas ladeiras
e poças nos terreiros –
quanta matéria para os porcos...

hoje,
fazem-me falta os atoleiros –
poema que estanca num verso.
fazem-me falta as meias retiradas,
as pernas da calça no joelho
e os homens lutando contra
a lama, a chuva, a sorte.

mas as águas também assombravam:
pediam silêncio nos telhados
para que ouvíssemos,
depois do clarão,
um tambor que enchia
todas as veredas.

a manhã sem nuvens era anunciada
pelo salto do tiziu,
um pássaro cujo canto não cabe
em si.
mas também pela festa
dos outros passarinhos -
sacudindo a água das penas -
e dos meninos, que depois da chuva
gorjeavam pelos riachos.

milagre maior
era o espinhaço alegre
do pão doce
comprado em Flamengo.


Villa-Lobos - Bachianas Brasileiras N°4, II movimento: Chorale (Canto do Sertão)

2 comentários:

  1. Já disse que sou uma fã derramada da sua poesia, moço?
    Pois sou.
    Indiscutivelmente.
    Adoro essa sua sensibilidade incoerente, esse seu jeito de dizer pelo detalhe, essa sua serenidade inquieta, essa acidez adocicada da sua escrita...

    Enfim, sua poesia me embriaga(senti aqui o balanço da d-10 vermelha na estrada de barro) e me faz pensar.
    Muito bom. =)

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  2. fui agora em minha Botelha, ali também em sua/nossa Acopiara.
    D-10 das 4:30 pra 5h da manhã que me apresentaram ao frio do começo das manhãs e o caminho das minhas férias. a casa dos meus mais antigos. tá aqui o cheiro do gás e a lembrança da mania de descobrir o caminho pelas brechas do velho carro, quando a poeira deixava. a curiosidade de descobrir grotas, riachos e, finalmente, os caminhos dos rios.

    faça isso mais vezes...é sensibilidade e muita habilidade com o que inquieta esse mente e essa experiência: sobram-lhe.

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