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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



domingo, 31 de outubro de 2010

o triângulo



Seu mundo era triangular porque queria ver o mundo a partir do instrumento, mas tudo era tão circular... O sol, se teimava olhar, queimava os olhos e fugia circularmente; a lua, se inteira, tinha formas circulares; sabia pela boca do povo e da televisão que a terra era também uma bola pendurada por barbante.
Diabos! Por que tudo é redondo?
Queria descer a serra e mostrar ao Cariri quem era – aos seus, quem seria. Antes de partir, diziam a meias bocas, ou a bocas inteiras, que não girava bem da cabeça... Ora!, se tomava sua cachaça nos fins de semana, era problema seu; se queria sair daquela miséria de plantar para si e dar a parte do patrão, era problema seu; se queria tocar triângulo, era solução sua.
Mas a cachaça parecia ter comido parte do juízo desse homem, assim como o trabalho que escavou os rostos de seus pais, de seus tios e primos mais velhos. Pensavam pequeno, pequeno demais: o pensamento cabia numas poucas braças e sacos de tomate, cabia naquela serra que comeria seu corpo – qual carcará?
Contava vinte anos quando no primeiro pau-de-arara do dia com uma mochila preta nas costas, umas poucas roupas e um triângulo nas mãos. Veio o caminho tocando e imaginando as glórias futuras: na rádio para que seus pais escutassem. Viajaria pelo Brasil inteiro e, se cansasse, compraria o terreno do patrão e construiria uma casa com alpendre perto da velha arapiraca. Ele, tão sem juízo quanto todos os outros, queria cantar o galope à beira-mar com conhecimento de causa.
Quem é hoje esse homem que desceu a serra? Conta umas tantas secas e várias batidas no triângulo, conta uns tantos bonés de candidatos e umas 3 bolsas pretas rasgadas, conta dois triângulos e incontáveis “não”.
Ali está: no pé do palco em praça pública, acompanha o ritmo da banda que toca. Quem vê seus olhos implorando para subir? Quem escuta o batido do seu coração intimidar a zabumba, circular? Quem conta a alegria dos seus dedos, que conhecem a baqueta como a mãe o filho? Mas para ele é tudo alegria, alegria grande!, via-se como um grande músico ao lado dos que estavam no palco. Fechava os olhos e levantava o rosto desdenhando, com seu sorriso de vitória, a lua. Seus tênis furados são botas de couro; seu crucifixo de madeira, um presente do papa; sua camisa rasgada, um gibão de Expedito Seleiro. Aquele não é um show para centenas de pessoas, é o mundo que escuta o seu triângulo e seus gritos de alegria. São seus parentes em cima da lamparina.
Ali está: anda pelas ruas do Crato com a calça rasgada e a barriga vazia. Quem é esse homem, Deus? “Quem é aquele homem, mãe?” Poucos passos depois, “É um bêbado, menino, desarreda”. Buzinas. “Sai do meio, doido!” Anda correndo em direção à praça – onde os holofotes apagam o sol, as várias pessoas se reúnem e os microfones esperam. Larga tudo perto de um banco qualquer e puxa seu triângulo favorito.
No palco, toca e canta seus maiores sucessos; põe o braço por trás das costas e toca, levanta a cabeça suada e toca, fecha os olhos e toca – sorri como menino. E toca.
Sente a luz nos olhos diminuir, onde estão seus holofotes agora? Não escuta mais o barulho de gente, o ronco das motos seca a voz do triângulo. Uma mercearia fechada, um cachorro revirando o lixo, uma viatura que corre. Por que baixa o rosto, homem? Por que salga a praça com suor? Por que derruba com tanto descuido o triângulo? A solidão de um pé judiando o instrumento, o ruído mudo da boca contorcida, a mão já molhada de chuva nos olhos.
Junta tudo e caminha sob o céu circular.
Homem, para onde?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

İstanbul


se eu não gostasse tanto da escrita de Orhan Pamuk e, principalmente, se Mariana Guanabara não tivesse me presenteado com uma edição turca de "İstanbul", este poema não existiria

ao lado da moeda
5 kuruş
abaixo da noite

esse poema de mistério,
que fez do mistério sua
matéria.

o livro de pamuk
em turco, türk,
é todo feito dessa matéria.

não o mistério de quem não vê,
ou daquilo que se revela num susto:
é o mistério de quem olha,
de quem quer, mas não pode.

os “s” com cedilha me são estranhos,
também os “g” com circunflexos inversos;
mas nem tanto os “i” sem pingos,
pois é onde livro e eu, breu,
nos reconhecemos
e mostramos as cartas.

eu fico imaginando sentidos,
signo que não significa,
e bordo um livro em cima deste:
desenho İstanbul com as sombras desta.

huzun.
ruínas, melancólicas e turvas
ruínas de prédios e letras
turcas.

e tem varais, canais, jornais,
tem navios partidos pelo tempo
e uma tristeza nestas ruas
entre as linhas,
nas tortas vielas entre as frases –
vielas que, fatalmente,
encontrarão uma palavra com telhados,
ou o precipício do fim da página,
da vida fora de İstanbul.

minhas duas pernas são meus olhos.

os cachorros na rua, a neve,
a fumaça das barcaças
e os trilhos dos bondes;
mas também
duygusunu, otobüs, hipodrom
hatırlatalım, oldoğunu, karşılayamamaktı...
quantas coisas no mundo
e quantos mundos dentro
das línguas.

que importa perder-me entre
esses mercados e palavras?
essas aspas (e) travessas?
entre os sinais?
encontrar-se é luxo de quem
entende.

sobra essa tristeza da noite
sobre as gentes, Galata, os véus,
Atatürk
e o fantasma da união européia
vadeando seus euros pelos becos –
um cão uiva, cidade ruiva,
chovem letras sobre as pedras
e ambas carregam muitos anos.

eu te abraço, cidade velha,
eu te beijo, cidade nova,
como quem vê do Bósforo
uma mesquita atrás da fumaça
e os sentimentos pulando
de dentro das palavras.


as duas últimas fotos são, respectivamente, de autoria de Ozan Sagdic e de Ara Güler

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

pequena história das duas décadas - VI

ou Onde o poeta opera um milagre


O sertão é dentro da gente.
(João Guimarães Rosa)


na d-10 vermelha,
o buraco perto da caixa de marcha
deixava ver o caminho pedregoso,
ou o barro vermelho
que rodopiava atrás de nós.

o cheiro do gás me deixava enjoado,
como me deixavam as manhãs
de solavancos térreos e azulados.
do botijão, hoje sei,
veio o perfume que vez por outra
tenho impressão de sentir
escrevendo um poema,
ou cruzando a 13 de maio.

vezes,
vínhamos do sítio até Flamengo
para assistir à televisão
que ficava em praça pública –
lá na ponta, alta, grande
para o povo que se amontoava
em olhos, pipoqueiros, namorados, chapéus, políticos, cadeiras, cervejas, picolés e bocas,
principalmente bocas.

em várias casas,
os espelhos já estariam cobertos,
com toalhas ou lençóis, quando
as águas que caiam no sertão
escrevessem rios nas ladeiras
e poças nos terreiros –
quanta matéria para os porcos...

hoje,
fazem-me falta os atoleiros –
poema que estanca num verso.
fazem-me falta as meias retiradas,
as pernas da calça no joelho
e os homens lutando contra
a lama, a chuva, a sorte.

mas as águas também assombravam:
pediam silêncio nos telhados
para que ouvíssemos,
depois do clarão,
um tambor que enchia
todas as veredas.

a manhã sem nuvens era anunciada
pelo salto do tiziu,
um pássaro cujo canto não cabe
em si.
mas também pela festa
dos outros passarinhos -
sacudindo a água das penas -
e dos meninos, que depois da chuva
gorjeavam pelos riachos.

milagre maior
era o espinhaço alegre
do pão doce
comprado em Flamengo.


Villa-Lobos - Bachianas Brasileiras N°4, II movimento: Chorale (Canto do Sertão)

domingo, 10 de outubro de 2010

pirraça

meu poema
é demônio que anda cuspindo
em igrejas,
ou menino que anda quebrando
vidraças.

meu poema
é fogo
e anda incendiando carros.

meu poema anda em versos
para dizer que
a igreja, as vidraças e os carros
são teus.

acho até que o poema
anda imitando
o poeta.