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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

viagem pitoresca do brasil




escrito sob a luz de João Cabral de Melo Neto, Chico Science, Ferreira Gullar e Descartes Gadelha (pintor da obra exposta,"Estudo para 'Guerra diariamente'")


irmão, irmã,
eu entrego Severino
que veio da Serra
da, sua própria, Costela
roendo-a em versos
até o Capiberibe.

eu te entrego Severino,
brasil,
que caiu no mangue
e matou sua fome com
o caranguejo da sua
migração.

mas eu também levo
a criança que saltou
dentro da vida
para pular mais tarde
dentro da rede,
irmão das almas.

eu levo,
ah, isso eu levo,
o oráculo das ciganas:
levo o Aratu
mas também o Gabiru
levo um Vira-lata
primo raso do Urubu
levo um Chié
mas também um Carcará –
a sombra que te cobria,
Severino de Maria.

eu te levo pela mão,
ó, pátria amada,
e lavo as bordas do que digo
com parte da fome de lixo
dos cristos do Jangurussu.

eu te apresento,
Terra adorada,
entre outros mil
o João Batista do lixão
lavando as testas dos crentes
com a fumaça do Jordão.

eu te apresento,
lindo pendão da esperança,
Moisés indo ao Sinai
trazer um peixe do seu cume
para fritá-lo no chorume –
recebe o háfeto.

peço que conceda,
mãe gentil,
qualquer rosa que haja
ao corpo dessa menina:
talvez o seu perfume
esconda a cadaverina.

eu te trago pela mão,
idolatrada,
até o cego Caronte
que nos levará de canoa
pelas margens plácidas
do Anil-vinagre de gullar –
um rio que vai dar,
não pela geografia,
na Lagoa do Gengibre.

como sei que estás calçado,
impávido colosso,
não te prevenirei
dos bichos fiéis
que das crianças
vão comendo os pés.

o barqueiro pede pressa,
pois o tempo muda
e quando vierem as chuvas
os corpos daquelas casas
alimentarão o Anil,
engrossarão o vinagre
que ferve podre no rio.

brilhou no seu da pátria,
um riso limpo macho e branco,
nesse instante.
florão da américa,
penhor da igualdade,
berço esplêndido –
crime que não cometi.

dos filhos deste solo
és mãe ardil,
pátria amarga
e vil.


esse poema não seria possível sem a ajuda, não intencional, de José Carlos Emídio e Noëlie Merlet

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

avenida cabo branco

de quem viu mais que o mar no mar


não é preciso muito
para tocar com o dedo
essa matéria singela.

mas há que ter um choro
e deixar que os pássaros
voem naturalmente no peito
até perder-se a sua voz
na nossa.

é preciso descer à praia
e banhar os pés na areia,
lavar o rosto nesse vento,
que é o outro nome para
o cheiro das ondas que arrebentam
nos meus braços.

noite sobre os coqueiros,
mas que não seja espessa,
que não seja mais espessa
que a matéria do coração –
o coração de menino
forjado no suor
das ladeiras do Brasil.

da sorte de coisas simples,
há o amor que ser
sensível aos dedos
e pulsar quente
como um segundo núcleo da Terra.
há o amor que ser teu,
querida,
mas há também que mudar
os frutos de mãos
para que doce na voz
de quem faltou,
para que árvore
nos dedos de quem cantou.

não é preciso muito
para tocar com os olhos
essa matéria singela.

é por isso que guardo -
com o punho cerrado
e o peito aberto
às baleias,
às conchas,
aos peixes -
uma sorte de coisas simples
que nascerá já ontem
do ainda não
que hora estoura com as ondas
e um violoncelo
na avenida cabo branco.

um artigo francês

nada causa mais frustração ao poeta brasileiro que
"o mar", "o mar", "o mar", "o mar"...

"La mer" c'est trop meilleur