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"Nasci pela Ingazeiras/ Criado no ôco do mundo./ Meus sonhos descendo ladeiras,/ Varando cancelas,/Abrindo porteiras./ Sem ter o espanto da morte/ Nem do ronco do trovão,/ O sul, a sorte, a estrada me seduz./ É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz/ É ouro em pó, é ouro em pó./ É ouro em pó que reluz:/ O sul, a sorte, a estrada me seduz"

- Ednardo



segunda-feira, 31 de maio de 2010

maio

maio caindo dentro de junho
feito água que cai no copo e
derrama um dia.

o que sobra de maio
não é o dia, todavia:
é esse nome sem nome
transbordando.

o corpo absorve,
e maio corre em cor
quebrando vasos e cantando
dentro de mim –
onde termina e onde começo?

sábado, 29 de maio de 2010

cinzento

Não sei se me amas,
mas ouço daqui as batidas
chamando-me, chamas
que se apagarão?

Não medi o espaço de um ano,
não medi toda a distância,
e não sei o que será,
se é que será;
mas quem ama não precisa disso
para saber que ama.

E quando um dia a chama
cansar de chamar,
restarão as cinzas
num outro mundo, cinza.

2007

um comentário em 2010

segunda-feira, 17 de maio de 2010

o curso




bateu o cigarro no cinzeiro.“vamos ao método. primeiro, folhas e papel. terá de haver também algum cimento preparado com suor ou sangue”. deu uma tragada tão profunda que a fumaça pareceu tossi-lo. “em lima, tentaram usar sangue de morcegos. infrutífero, métodos medrosos: deve ser o nosso. dos escravos não, barão. agora... isso, anote. deve chamar um contrabaixista, um violoncelista e um bandoneonista, donde se vê que o espaço deve ser considerável. também trazê-las logo depois de verem os corpos das suas crianças. sim. isso mesmo, casa isolada, ou isolar o som”. o senhor já sexagenário bateu a xícara no pires – décadas mais tarde alguns dirão que foi medo, outros, parkinson. um jovem brincava com a costeleta, outro anotava vigorosamente até os silêncios: folhas e folhas em branco.
“de preferência meninas: uma branca, no máximo. pois bem... é preciso um grande birô... as paredes? como são detalhistas! o segredo é não serem todas brancas. azulejos são terminantemente proibidos. aliás! são permitidos, anote essa variação: deixa-se uma parede com azulejos brancos e quebram-se dois ou três tijolos na parede oposta, que deve dar para o sol. dessa forma, dois, ou três, fachos de luz entrarão tortamente e incidirão no branco, assim o quarto ficará mais escuro... claro, nada como um oposto para confirmar o outro. pois bem... seria bom que pusessem alguns cavalos no cômodo acima, de sorte que, quando correrem, cairá uma poeira fina que atravessará os fachos produzindo um efeito desolador...” o dono do bar explicava para dois clientes barulhentos que o espaço havia sido reservado pelo barão e o senador – os três jovens estudantes e o padeiro eram dispensáveis da justificativa. “tinto, por gentileza”. fez-se silêncio até a chegada.
“pois bem, jovens, que mais querem saber? tudo? como ‘tudo’?! eu já lhes dei todos os ingredientes, que mais querem? não acham que vocês podem se virar muito bem juntos...? é fato... com o cimento vocês erguerão a casa, donde se percebe que é trabalho para anos e anos de hemorragia; e também de corrida ao redor da praça do imperador – aconselho o uso de garrafas de vidro, que devem ser balançadas constantemente, no primeiro caso, toalhas, no segundo”. o padeiro calculava o custo das garrafas em croissants, o jovem médico achava que ninguém perceberia (nem ele) se roubasse o sangue dos pacientes, o advogado... o advogado calculava os anos de encarceramento e as melhores formas de esconder as evidências. “bom, senhores, é tudo. o papel deve ser amarelo e a caneta, preta – isto é crucial! espero que nos encontremos em breve e que dessa vez vocês me vejam... sim, me provocam, mas são tão míopes que fazem do umbigo um muro... se não conseguirem assim, só resta a amora sobre o caixão, ou o clichê da dúzia de flores vermelhas, mas já nem importará tanto, não é?” riu enquanto apanhava a bengala e o chapéu. “no mais, vocês sabem que chegará um tempo em que não vai ser tão fácil... ou será... será, mas o gosto também será outro. e minhas roupas também”. exatos três segundos de silêncio, como foi previsto, e voilà: “importar-se-ão menos que hoje... os senhores vão me desculpar, mas é chegada minha hora”, tomou o resto do vinho, “há muitos campos de batalha para visitar, muitas amantes sobre parapeitos, mares salgados, navios negreiros, bondes perdidos, goteiras, passarinhos, capoeiras, inconfidências, construções, verde... finda aqui nosso curso, gentlemen”.
na calçada, acendeu mais um cigarro e pensou que aquela roupa o incomodava. viu os bondes lotados... brancas pretas amarelas... para que, no fim das contas? viu o escarro infinito das chaminés e as caras enlameadas dos negrinhos. pôs a mão na cintura: chapéu francês observa vitrine. riu um riso que caiu no canto da boca e saiu voando pelas ruas que levam ao porto.
“o pior é que eles precisam de receitas até para isso...” enfiou o cigarro em uma maçã e a enroscou num poste, assim a calçada ficava mais bem iluminada, julgou. miseráveis.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

receita




desculpando-se,
amassar o coração de três girassóis
e lançar girando o amarelo.
emboscar sete borboletas
e capturá-las com “bom dias”.
plantar abelhas em kiwis
e aguardar o espirro do mel –
ver-se-á que nem é tão difícil.

misturar todos os ingredientes
ouvindo frevo
e espremer os sentimentos
mais doces e raros.

arremessar nos escapamentos dos carros
e nos óculos da burguesia nacional,
fugir tocando rabeca
e tropeçar gargalhando num mundo mais
humano.

terça-feira, 11 de maio de 2010

violoncelos carambolas



Para Heitor, mestre, e também para Eudenia, irmã.

no início era quase o som,
e era, assim, quase estar vivo –
não sendo, pois, sentimento.

o ruído viu-se bom
quando veio a percussão
num suspiro tão do tempo.

e foi-se fazendo tanto,
de si muito para lá,
de lá em ré para o dó,

que a vida se fez em canto:
a terra, em flor, violinos,
se o sol em raios violas.


Choros Nº10 - Villa-Lobos

domingo, 9 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - IV

a primeira vez para ela
foi em um celular,
a luz do aparelho era azul,
mas daquele dia em diante
era o verde.
cairá o quarto na lembrança, o chão: eu.

e foi no chão de um quarto
a segunda que escrevi,
era um lápis no borrão.
eu lembro, catavento.
cama, cama-vento: ela.

hoje correm as páginas e entrelinhas
e sabem o mundo
em qualquer palmo de terra
onde haja vida –
independente dela, de mim,
e, principalmente,
de nós dois.

vou
carregando a minha aldeia
cantando em carrocerias
andando em ruas antigas.

tudo isso para descobrir
rindo
que caminho e caminhei sempre sobre seus olhos,
Terra tão verde.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - III



depois de fulana
vieram outras, outras tão lindas.
tão lindas que me queimam o peito,
golpe do passado,
falta ar.

desfaleço no quarto,
e é um grande cômodo francês
ou o miserável de raskólnikov,
e caio ao chão
beijado pelo coice da vida.
alguém corra para olhar seu pulso!

afogando-me menos em sangue
que nas lembranças delas,
eu fico largado num canto
usando a cadeira como apoio
em busca do sopro perdido.

tinha cabelos cacheados,
lindos loiros cacheados
como raios de sol comprimidos.
leu meus primeiros poemas
que escrevi com essa intenção,
mas nunca soube,
eu nunca contei,
que eram todos para ela –
não deixe de dizer isso.
e peça desculpas, peça,
pela conversa que ousei,
mas nunca tivemos.
ficou melhor assim.

era o começo da vida em outra cidade
e vieram outras, outras tão belas
que meu peito borbulha em festa –
aniversário ou velório.

mas houve, principalmente,
as que não soube,
as que não lembro,
as que não souberam.
nunca me dei bem com as palavras –
e essa é uma daquelas boas ironias.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

pequena história das duas décadas- II

o primeiro foi maquiavel.
também li algo de rousseau, voltaire,
mas enganei poucos com nietzsche.
eu me queria o príncipe,
ou um revolucionário francês.

comecei a ler menos por vontade
que por gostar de fulana –
se quem ela amava lia,
eu também deveria.

mas eu gostava, josé,
eu gostava.
a única pedra em meu sapato
era a ausência,
o chão logo depois do salto,
arco tocando cordas de vento.

e pensar que ela vivia comigo...
pensar que ela me explicava coisas
que nem sequer sabia sentir.

a pedra, no sapato, jogou-se
do pé para o caminho
e saiu pulando pelo calçamento.
os versos ricochetearam nas paredes
e no sino da igreja.
um deles me perfurou o peito.

durante dois segundos fiquei em silêncio
me esvaindo em sentimentos
e visões de antes.
as nuvens passavam rápidas
e tudo ficava distante,
lento e distante.
era a morte?

foi quando.
entraram no peito duas folhas de uma árvore,
dois olhares de uma mulher,
e duas gotas do suor de um roceiro.
dentro, se fez o cimento
e cavou-se o alicerce
onde vou levantando a mim
com os tijolos que consigo queimar
no meio-dia do sol.

foi assim que a poesia entrou nele uma segunda vez,
e é por isso que sua rubrica tem dois pontos –
é o que conta o mito.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

pequena história das duas décadas - I

onde se dizem algumas verdades sobre a vida e ainda algumas trivialidades bestas sobre o poeta e a natureza da poesia, e aí eu duvido muito que alguém se interesse

o escritório tinha paredes cascarentas
e cortei-me várias vezes.
sobre o bureau, papéis, pedras, canetas,
meus braços lendo o livro.

então um livro poderia ser assim,
não falar de répteis, tabuadas?
que é isso que se faz com as palavras?
a última de uma linha
a linha de uma última
se fecham em som, em voz
e surpresa.

vou-me imitando isso
e a professora diz um nome:
“poesia”.
poesia, poesia...
vou repetindo até chegar em casa,
passando por terrenos baldios
e a rua onde seria o cabeleireiro.
poesia, poesia...
baldeiam terrenos com cabelos verdes
por entre o barro vermelho das doze horas
e as casas, casas ainda não feitas,
que escalariam cada palmo do ar
quando eu já me fosse menos novo.
poesia? poesia?

as belas meninas da escola
sabiam o que era “poesia, poesia...”,
mas não era a mesma coisa
para mim e para elas.
semiótica (só em dois mil e oito):
riso é pena ou “gostar”?
eu não amava, eu “gostava”
de fulana, sicrana...

menos cedo,
eu saberia a matéria cheirosa
de que é feito o amor –
fogo de beber com as mãos.
meu coração é meus rins
e o peito, menino, sorri.
passo exalando amor pelas mercearias,
fino vapor verde.

domingo, 2 de maio de 2010

o aniversário

Eu,
o tempo curvou-me a coluna,
o tempo fez-me curvo,
curva sinuosa,
perigosa?

Eu,
o tempo fez-me "Eu",
o tempo fez-me tal sou;
E se "Eu", e se Sou,
não devo nada ao nada.

A vida fez-me Ser,
"Ser" maiúsculo,
"Ser" verbo,
Ser humano.

2006